Por Cláudio Damasceno
Ainda é cedo para mensurar os efeitos da Operação Lava Jato para o futuro do Brasil. Mas, se realmente aprendermos a lição, o patrimonialismo – esse mal cuja primeira manifestação nestas terras foram as capitanias hereditárias – passará a ser, aos olhos da opinião pública, o principal inimigo do nosso progresso. Numa projeção otimista, deixaremos de ser lenientes com as relações nada decentes entre alguns agentes públicos e capitães da iniciativa privada. Afinal, já conhecemos o resultado dessa relação pouco republicana: a corrupção, que torna o Estado um paquiderme ineficiente, caro e insaciável; um viciado em arrecadação, eternamente crescente e injusta.
Nem tudo, porém, é desalento. Alguns efeitos da Lava Jato são muito positivos, sobretudo quando se referem ao aperfeiçoamento da vigilância das operações financeiras. Um deles é o Projeto Herança, desenvolvido ao longo deste ano, com base na experiência adquirida de fiscalizações no âmbito da operação. Seu foco são agentes públicos e políticos que apresentam indícios de enriquecimento ilícito, e situação incompatível com renda e valores declarados à Receita Federal (RFB).
Antes que poderosos defensores de muitos dos que cairão nas redes do Herança digam que se trata de mais um tijolinho na construção de um Estado policial, que vigia os contribuintes de várias maneiras, é preciso deixar claro que somente quem deve é que tem que temer. Vimos que não falta criatividade àqueles que se fartam do dinheiro obtido ilegalmente. Se uma década atrás o qualificativo “laranja” chocava o Brasil pela frequência no noticiário político-policial, hoje os “trustes” estão na ordem do dia. A corrupção é difícil de ser combatida exatamente porque parte dela paga regiamente profissionais habilidosos, que fazem das brechas na lei a saída de emergência para seus clientes.
O Projeto Herança foi desenvolvido na cidade de São Paulo pela Delegacia Especial de Fiscalização de Pessoas Físicas da Receita Federal (DERPF). Desencadeou 15 ações de fiscalização, que devem resultar algo em torno de R$ 15 milhões em autos de infração. A média de R$ 1 milhão por auto é bem superior à observada nos lançamentos das pessoas físicas – nos últimos cinco anos, girou em aproximadamente R$ 680 mil. O programa foi elaborado paralelamente à atuação de auditores na Lava Jato.
O Herança rastreará também patrimônio não declarado à Receita. Haverá troca de informações com órgãos de registro de aeronaves, embarcações, imóveis e automóveis de alto luxo. A conexão com essas bases de dados é fundamental. São inúmeros os casos de dinheiro recolhido ilegalmente que se torna um bem, colocado em nome de alguém que jamais teria capacidade financeira de obtê-lo. E não por acaso recursos levantados em transações ilegais se transformam em ativos de alta liquidez – não perdem valor e podem ser negociados rapidamente pelos verdadeiros donos, se houver necessidade.
Auditores fiscais que trabalham no Laboratório de Tecnologia contra Lavagem de Dinheiro, em São Paulo, integrarão o projeto. É gente com especialização, adquirida depois de muito se assombrar com aquilo que já viu nas ações de combate à corrupção.
Finalmente o Brasil começa a levar a sério a frase de Mark Felt, o célebre Garganta Profunda, ao indicar como o jornalista Bob Woodward poderia desmontar a estratégia da Casa Branca no Caso Watergate. Seguir o dinheiro (“follow the money”) sempre foi a maneira mais eficaz de combater o enriquecimento ilícito e quebrar a espinha dos assaltantes de Estado e estatais.
O nome do projeto foi bem escolhido pela Receita – “Herança”. Na visão da autoridade fiscal, a ideia é deixar “um importante legado para as futuras gerações”. Justíssimo. Pátria educadora não é somente aquela que põe dinheiro na educação. É aquela que investe bem o dinheiro do cidadão. E investir bem é tapar os furos da corrupção, que enfraquece o Estado, escarnece da ética e gargalha da moral.