André Augusto Salvador Bezerra*
O ataque à sede do jornal Charlie Hebdo, ocorrido em Paris no último 7 de janeiro, desencadeou forte reação da extrema-direita francesa. O discurso da xenofobia e da implementação de ações repressivas, como a aplicação de pena de morte, retornou à ordem do dia nos debates públicos sucedidos na França.
Não foram, contudo, somente os conservadores franceses que se utilizaram da tragédia. Representantes da direita brasileira também se aproveitaram do evento, colocando-se como verdadeiras vitimas de ações de grupos que, segundo eles, se equiparam aos terroristas da França.
A principal reação conservadora do Brasil adveio de profissionais que, em nome do jornalismo investigativo, frequentemente são envolvidos em acusações de calúnia e difamação contra desafetos; que, em nome da segurança pública, defendem a violência policial e justificam a violência privada dos linchamentos em programas transmitidos em emissoras de rádio e televisão; e que, em nome do humor, atacam estratos populacionais historicamente colonizados e objetos de racismo. Por sua vez, os equiparados a terroristas são aqueles que defendem a responsabilização por acusações infundadas e por ações repugnantes como o racismo; são ainda aqueles que defendem a implementação de políticas públicas objetivando a democratização dos meios de comunicação, ampliando o direito à palavra para além do reduzido número de proprietários de grandes empresas de comunicação do Brasil.
O raciocínio adotado é singelo: quem defende a responsabilização e as políticas de democratização midiática quer, no fundo, restringir a difusão de ideias. Cuida-se, segundo tal pensamento, de estratégia que se assemelha à dos terroristas que atacaram a redação do periódico francês para calar os críticos do Islã. Em ambos os grupos políticos têm-se inimigos da liberdade de expressão.
Liberdade de expressão e responsabilização
A defesa da responsabilização pelo abuso do direito à palavra não é, porém, peculiaridade de determinados grupos brasileiros no presente início de século 21. Pelo contrário, o processo histórico de positivação da liberdade de expressão foi coincidente à construção de arcabouço jurídico objetivando impor medidas contra abusos na divulgação de informações e pontos de vista, em verdadeiro controle de conteúdo.
Nesse sentido, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, um dos principais marcos das liberdades públicas em todo o mundo, vedou a censura prévia, mas responsabilizou a prática de abusos. O artigo 11 do documento é claro: “A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do Homem; todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na Lei.”
Em tempos atuais, documentos internacionais de Direitos Humanos caminham no mesmo sentido da paradigmática declaração francesa. É o caso da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, cujo artigo 13 prevê a responsabilização ulterior que assegure o respeito aos direitos e à reputação das pessoas, bem como a proteção da segurança nacional, da ordem pública, da saúde e da moral públicas.
A Constituição Federal brasileira de 1988 segue a mesma linha, consagrando a liberdade à palavra independente de licença ou censura, vendando o anonimato e garantido o direito de resposta e de indenização por abusos (art. 5º, IV, V, IX e X). Em capítulo especificamente destinado à comunicação social, proíbe a censura e a elaboração de lei apta a embaraçar a liberdade de informação jornalística em qualquer meio de comunicação (art. 220, caput e parágrafos 1º e 6º). No mesmo capítulo, o legislador constituinte faz menção expressa à censura política ideológica e artística, vedando-a; mas permite a elaboração de lei federal reguladora de diversões e espetáculos públicos e garantidora dos valores da pessoa, da família, da saúde e do meio ambiente (art. 220, parágrafos 2º, 3º e 6º).
No caso das emissoras de rádio e televisão, o diploma constitucional foi mais específico na regulação do conteúdo. Por fazerem uso de um bem público (o espectro de radiofrequência), exercendo sua atividade sob o regime de concessão, tais empresas devem, segundo o artigo 221, dar preferência à programação: de fins educativos, artísticos, culturais e informativos; que promova a cultura do país e das diversas regiões, com estímulo à produção independente; que regionalize a produção cultural, artística e jornalística e que respeite os valores éticos e morais da pessoa e da família.
Democratização dos meios de comunicação
Além da vedação da censura e da responsabilização por abusos, o processo de construção da liberdade de expressão como direito fundamental, historicamente, considerou a necessidade de difusão plural de ideias. Daí que, quando analisou as virtudes que enxergava da democracia estadunidense no século 19, o francês Alexis de Tocqueville bem percebeu que tal sistema tinha por base, conforme suas próprias palavras, um número “além do imaginável” de jornais.
No século seguinte, a consolidação dos oligopólios oriundos da desregulamentação da economia de mercado ampliou a preocupação em relação à concentração dos meios de comunicação.
Sendo assim, a fim de preservar o pluralismo informativo, países como o próprio Estados Unidos da América, examinado por Tocqueville, passaram a regular o domínio midiático, proibindo, por exemplo, a propriedade cruzada dos meios de comunicação (isto é, o domínio concomitante de diversas espécies de mídia em uma dada região geográfica). No mesmo sentido, a Constituição Federal brasileira de 1988, cujo artigo 220, parágrafo 5o veda a formação de monopólio ou oligopólio na propriedade dos meios de comunicação.
Barbárie e civilização
O reconhecimento jurídico da liberdade de expressão deu-se no mesmo contexto histórico da consolidação do Estado de Direito, fundado nas teorias do contrato social. Tais teorias, em linhas gerais, apartam dois momentos da humanidade: o estado de natureza onde imperava a barbárie da justiça com as próprias mãos e o estado civil que, superando a primeira fase, trouxe o modo civilizado de resolução de conflitos e de defesa de direitos pelas vias institucionais (ressalvado o direito de resistência).
Sustentar a responsabilização daqueles que fazem da palavra um instrumento de violação de direitos configura um modo civilizado de defesa da liberdade de expressão enquanto valor pertencente a toda sociedade. Da mesma forma, demandar pela democratização dos meios de comunicação, em cumprimento ao artigo 220, parágrafo 5o, da Constituição Federal de 1988.
Por outro lado, invadir a redação de um jornal e matar aqueles que teriam ofendido uma crença religiosa, ao invés de procurar os meios institucionais para a resolução do problema, é fazer uso da barbárie. Assim como defender, em uma emissora de televisão, a prática dos linchamentos e o arbítrio de agentes policiais contra pessoas tidas aleatoriamente por suspeitas.
É preciso inserir a liberdade de expressão em seu devido lugar para, no atual momento de comoção, indagar quem, de fato, se equipara aos terroristas da França.
* André Augusto Salvador Bezerra é mestre e doutorando em Direito e presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia