O PL 2630/2020, que “institui a lei brasileira de liberdade, responsabilidade e transparência na internet” encontra-se no plenário da Câmara dos Deputados. O substitutivo do relator Orlando Silva já foi aprovado pela comissão especial designada para apreciá-lo. Esteve em vias de ser votado pelo plenário. Em 02/05/2023, foi retirado de pauta. Por causa de intensa bombardeio.
Algumas big techs foram acusadas de organizar seus algoritmos para direcionar internautas a conteúdos contrários ao projeto. O início da sessão legislativa de 2024 coloca o desafio de que o PL volte à ordem do dia e seja finalmente votado. Enquanto o poder legislativo permanece omisso em seu dever de enfrentar esse assunto da regulação digital, o poder judiciário vai preenchendo o vácuo. Na sessão plenária do dia 27/02/m2024, o TSE aprovou as resoluções que regerão as próximas eleições municipais. Entre elas, a Instrução nº 0600751-65.2019.6.00.0000 alterou a Resolução TSE nº 23.610/2019 – que dispõe sobre a propaganda eleitoral. A novidade foi a disciplina do uso das ferramentas de inteligência artificial nas campanhas. O presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, registrou que o TSE editou normas modernas que vão combater a desinformação, as fake news e o uso ilícito da inteligência artificial (IA). Acrescentou que resolução dotará a justiça eleitoral de instrumentos eficazes para combater o desvirtuamento nas propagandas eleitorais, os discursos de ódio, antidemocráticos e “a utilização de IA para colocar na fala de uma pessoa algo que ela não disse”. Destaque para a vedação absoluta ao uso de deepfakes, a restrição ao uso de chatbots e avatares para intermediar a comunicação da campanha e a exigência de rótulos de identificação de conteúdo sintético multimídia. Introduziram-se medidas para o controle da desinformação no processo eleitoral. Uma delas, prevista no artigo 9º-C, veda a utilização “de conteúdo fabricado ou manipulado para difundir fatos notoriamente inverídicos ou descontextualizados com potencial para causar danos ao equilíbrio do pleito ou à integridade do processo eleitoral”, sob pena de configuração de abuso de utilização dos meios de comunicação. A punição é a cassação do registro ou do mandato. Outra novidade, inserida no art.9º-E, estabelece a responsabilização solidária dos provedores de internet, civil e administrativamente, quando não promoverem a indisponibilização imediata de determinados conteúdos e contas durante o período eleitoral.
A liberdade de expressão pode ser mais bem preservada se houver uma regulação democrática da internet. Uma regulação adequada pode preservar os valores que venham a ser escolhidos democraticamente por cada sociedade. Como aliás, está propondo a Comissão Especial de Direito Digital da OAB Federal, com a ideia de um conselho triparte para regular a internet. Argumentando que a regulamentação das plataformas no Brasil “não pode vir desacompanhada de órgãos independentes com a função de supervisionar o seu cumprimento”, a OAB encaminhou ao relator do PL 2630/2020 uma proposta para a criação de um órgão regulador das plataformas digitais para ser acrescentado ao texto do PL. Sob a justificativa de que “a implementação de um sistema verdadeiramente democrático de governança da esfera pública digital não deveria concentrar o poder decisório em um único ator”, a Comissão de Direito Digital do CFOAB propõe a construção de um Sistema Brasileiro de Regulação de Plataformas Digitais tripartite, com instâncias decisórias integradas por entidades do estado e da sociedade civil.
Essa proposta da OAB é muito melhor do que deixar que as big techs criem conteúdos com os valores que escolham discricionariamente. E também é melhor do que deixar para o STF. Uns poucos decidindo tudo. Aliás, seria muita ingenuidade supor que a AI seria neutra de valores, como bem advertiu Pedro Doria (O Globo, 19/05/23). Mesmo que essas grandes empresas de produção e difusão de conteúdos deleguem às máquinas de AI a própria criação dos textos, imagens e sons que vão disseminar. Isso não é pouco poder. Seja político, seja jurídico. No fundo, está em jogo a disputa de poder sobre o futuro que queremos. Um futuro assentado em quais sistemas de valores éticos?
Vê-se, pois, que, diante da inércia do legislador em face da relevância e urgência da regulação digital, ao menos um dos poderes do estado não se está omitindo. Ao mesmo tempo, a aplicação desses dispositivos para regular a campanha eleitoral servirá de experimento para que a futura legislação mais geral sobre o tema possa ser aprimorada a partir dos sucessos e insucessos verificados.
Maurício Rands, advogado formado pela FDR da UFPE, professor de Direito Constitucional da Unicap, PhD pela Universidade Oxford