A rebelião antiliberal nos EUA e no Brasil

Por Maurício Rands

Há um certo senso comum sobre a perda de significado das distinções ideológicas. Sobretudo a dualidade esquerda/direita. Ou liberal/antiliberal. Ou progressista/conservador. Gente da estatura de Norbert Bobbio já mostrou como é frágil esse senso comum. Chamemos como quisermos certos princípios organizadores das sociedades, há diferenças nítidas entre as correntes teóricas, instituições e regimes políticos. Há aquelas que realçam valores como liberdade, igualdade e participação. Há outras que realçam a busca pelo desenvolvimento e pela segurança acima daqueles outros valores. Os arranjos e combinações, claro, dependem de contextos históricos.

O professor Robert Kagan, senior fellow da Brookings Institution, do alto de sua erudição, é outro que não se deixa levar pelo senso comum. Acaba de publicar um livro seminal sobre os riscos à democracia americana causados pela coalizão antiliberal que acabou por eleger Trump. As 218 páginas de seu “Rebellion – How Antiliberalism is Tearing America Apart – Again” analisam a evolução das instituições da Constituição Americana de 1787. Demonstram que o aparente consenso sobre os valores e instituições liberais e democráticos foi minado desde o início. Primeiro pelo compromisso imposto pelos estados do Sul que garantiu a permanência da escravidão (“the vicious bargain”, em sua expressão). Depois pela atuação de antiliberais que nunca respeitaram o tratamento igualitário que deveria ser consagrado aos pretos, às mulheres e aos imigrantes por força de uma constituição liberal e democrática. Os escravistas do Sul fizeram a secessão e criaram uma confederação por não aceitarem a eleição do abolicionista Abraão Lincoln em 1860. Após o triunfo do Norte e aprovação das Emendas Constitucionais 13ª, 14ª e 15ª, que proibiram a escravidão e deram o direito de votos aos negros, essas correntes antiliberais trataram de impor instituições e práticas que continuaram violentando a vida, a liberdade e os direitos políticos dos pretos e povos originários. Assim como das mulheres e imigrantes.

Sempre sob o argumento da autonomia dos estados, do fundamentalismo religioso e da “precedência” dos colonos brancos. Os supremacistas brancos chegaram a criar movimentos terroristas como o Ku-Klux-Klan. Esse inconformismo com a ordem liberal sempre esteve presente na história americana. Variando de força, mas nunca extinto. As reformas do New Deal de Roosevelt e da extensão dos direitos civis às minorias nos anos 50 e 60 provocaram ressentimentos que viriam a se expressar nos movimentos do Macartismo do pós-guerra e da “nova direita”, de Barry Goldwater (1964), Ronald Regan (1980), Newt Gingrich (90s), passando pelo movimento Tea Party. Esse último, surgiu com forte apelo populista a partir de 2008, como reação às iniciativas sociais de Obama, o primeiro presidente negro eleito nos EUA. A partir daí, a coalização contrária ao liberalismo social promoveu uma inflexão populista que culminou nas eleições de Trump em 2016 e 2024. O programa de forte apelo a um passado idealizado (“Make America Great Again”) capturou os ressentimentos gerados pelo avanço dos direitos sociais, das causas identitárias e da imigração. Tudo isso percebido como imposições de uma elite liberal/social e acadêmica que teria o controle da burocracia governamental. O resultado foi a ascensão de um líder como Trump. Uma verdadeira rebelião contra os valores da Constituição de 1787 e todos os avanços conseguidos pelos segmentos historicamente excluídos e discriminados.

Essas visões estreitas e interesses egoísticos nunca aceitaram compartilhar direitos e participação política, econômica e social. O mesmo sempre ocorreu no Brasil. Tome-se apenas o período recente que se inaugurou com a Constituição Cidadã de 1988.

Houve tempo em que pareciam condenadas às franjas as correntes de ultradireita que apoiaram as ditaduras da nossa república. Essa cultura excludente e autoritária ficou latente no período que vai da redemocratização até o surgimento do movimento bolsonarista. Mas, como nos EUA, voltou com força e deu voz a posições extremadas de uma direita populista e autoritária que soube explorar problemas reais de corrupção, mal funcionamento das instituições e insuficiência dos serviços públicos.

Além dos ressentimentos dos conservadores diante do empoderamento de mulheres, pretos e gays. Catalisados pelo manejo do fundamentalismo interesseiro de algumas igrejas neopentecostais. E fortalecidos pelo modelo de negócios das plataformas digitais. Como se aqueles que foram historicamente discriminados tivessem que ficar condenados a nunca ter voz e vez. Nos EUA, como no Brasil, essas correntes nunca deixaram de pensar como pensam. Nem de praticar a exclusão e as discriminações que sempre praticaram. Apenas refluíram quando as tendências democráticas, liberais e progressistas exerciam alguma hegemonia transitória. Esse livro de Robert Kagan ajuda-nos a entender as duas rebeliões que se expressam em movimentos como o trumpismo e o bolsonarismo.​

Maurício Rands, advogado formado pela FDR da UFPE, professor de Direito Constitucional da Unicap, PhD pela Universidade Oxford

Natural do Rio de Janeiro, é jornalista formado pela Favip. Desde 1990 é repórter do Jornal VANGUARDA, onde atua na editoria de política. Já foi correspondente do Jornal do Commercio, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo e Portal Terra.