Por Cristovam Buarque
Diz-se que a verdade é a primeira vítima na guerra. Na epidemia é a lucidez. A urgência no atendimento para barrar a epidemia e cuidar da saúde das pessoas faz esquecer que a vida continuará depois. A saúde não assegura a vida plena para uma pessoa e a sociedade. No ano de 1348, auge da peste negra, o imperador Carlos IV fundou a Universidade de Praga. Depois, ela serviu para o Renascimento que abriu as portas para a ciência que indica como enfrentar a nova peste: com o isolamento.
A insensatez está levando ao debate sobre a importância e não sobre a urgência. Respirar e comer são igualmente importantes, mas o oxigênio é mais urgente. No lugar de debater o que é mais importante, o sensato é tomar as medidas urgentes para salvar as vidas hoje, cuidando da respiração das pessoas, sem esquecer de cuidar da recuperação da economia depois, para assegurar o necessário à vida plena: emprego, renda, produção, um propósito para viver e condições para buscar a felicidade.
O vírus está mostrando a falta de solidariedade dos que não pensam na urgência da epidemia, e a insensatez de não levar em conta o futuro depois dela. Precisamos ser solidários, como manda a ciência médica, com isolamento, leitos, respiradores e renda para os sem salário. Mas também temos que cuidar da recuperação posterior da economia e da sociedade.
O vírus está dizendo que fomos insensatos no passado. Há séculos deixamos milhões de pobres sem renda por causa da estrutura social. Falamos agora da necessidade de trabalho, mas nunca tivemos preocupação com pleno emprego. Dizemos que é preciso cuidar da higiene para evitar a transmissão do vírus, mas deixamos 35 milhões de pessoas sem água em casa para lavar as mãos e 100 milhões sem tratamento de esgoto. Criticamos a irresponsabilidade de um presidente que não entende a urgência do isolamento, mas esquecemos que a falta de água tratada e rede de esgoto é produto de governos anteriores. “Nossos” governos.
O vírus está nos indicando que o obscurantismo do atual presidente tem características de genocídio. Mas lembra que nas gestões anteriores não fizemos o suficiente para impedir dezenas de milhares de mortos por malária, dengue e sarampo. O vírus está nos apontando que não cuidamos do analfabetismo porque não há um “letravírus” que contamine os que aprenderam a ler, fazendo-os analfabetos outra vez. E lembrando que sem educação não daremos emprego e renda aos que sobreviverem, despreparados profissionalmente. Para viver não basta respirar.
O vírus nos revela ainda que ele foi trazido do exterior por avião para os bairros ricos e nos pergunta se a epidemia seria enfrentada com o mesmo rigor se tivesse chegado de ônibus, direto para os bairros pobres. Nesse caso, talvez estivesse recebendo a pouca atenção dada ao aedes aegypti, que transmite a dengue, ou do anopheles, que transmite a malária. Ele especula que se o vírus da poliomielite não atingisse as pessoas indiscriminadamente, talvez não tivéssemos dado ao mundo o exemplo das “gotinhas” que erradicaram essa antiga epidemia.
O vírus anuncia que para salvar nossas vidas estamos em quarentena, sobrevivendo à síndrome da abstinência ao vício do consumismo nos shoppings e à falta de viagens. Ele nos ensina que podemos ver o mundo, estudar, trabalhar mesmo sem sair de casa. E que a saúde de cada um depende da saúde de todos, que a solidariedade com os outros é necessária para a sobrevivência de cada um, que a saúde de cada um não será plenamente segura se não cuidarmos da saúde pública.
O vírus está confirmando que além de levarmos a sério a ciência médica precisamos respeitar a ciência econômica e sobretudo a velha aritmética. Que neste momento devemos gastar o que for preciso para atender às necessidade dos doentes, de trabalhadores desempregados e se empresários falidos, mas que não devemos deixar a conta ser paga depois pelos pobres com a carestia da inflação, nem pelos jovens que pagarão o aumento da dívida pública. A solidariedade na doença precisa ocorrer na hora de pagar a conta
O vírus tem falado que além da quarentena, precisamos de uma revolução no nosso comportamento e nas nossas prioridades. E nos grita que é preciso mudar o velho padrão do progresso baseado na voracidade do consumo e na ganância do lucro. Mas ele sussurra o medo de que, passada a epidemia, voltaremos aos velhos costumes de antes: o desprezo ao saneamento, à educação de base e à saúde pública, e a preferência pela ilusão inflacionária, obrigando os pobres a pagarem a conta com a carestia.
* Cristovam Buarque é professor emérito da Universidade de Brasília