Por Chico Alencar
Três séculos de colonização, quatro de escravidão e cinco de domínio oligárquico e patriarcal formam os pilares profundos de nossa cultura autoritária. A República de 128 anos é marcada por breves períodos de democracia liberal em meio a longas etapas de regime de exceção: República Velha dos coronéis, do “café com leite”, até 1930; República Nova dos tenentes interventores culminando com o Estado Novo, até 1945; ditadura civil-militar de 1964 a 1984. Temos um crônico déficit de participação popular nas decisões sobre as políticas públicas.
A mentalidade e a prática autoritária estão dentro de nós. Ela se manifesta nas relações familiares, de vizinhança, de trabalho. O reconhecimento de hierarquias, muitas vezes, é apropriado por quem tem função de direção como aval para o mando vertical permanente.
Também a esquerda carrega em si sementes de autoritarismo. A militante socialista Rosa Luxemburgo (1871-1919) preocupava-se, há um século, com certas tendências da centenária Revolução Russa de 1917: “Sem eleições gerais, sem uma liberdade de imprensa e com uma liberdade de reunião limitada, sem uma luta de opiniões livres, a vida vegeta e murcha em todas as instituições públicas, e a burocracia torna-se o único elemento ativo”.
A esquerda, apesar de sua saga libertária, precisa ser educada para a democracia. Quantos crimes já foram cometidos em nome da “democracia da maioria”, definida com mais franqueza como “ditadura do proletariado”, transmutada em burocracia do partido único? Stalin, Pol Pot, Ceausescu e que tais nunca mais!
Sou de uma geração que, com sua energia juvenil, travou intensa batalha contra o regime autoritário e covarde da tortura, da truculência, da censura, da ditadura militar apoiada pelo alto empresariado. A deposição de Jango, em 1964, inaugurou uma etapa sombria da nossa História – que, pateticamente, muitos jovens de hoje não apenas desconhecem como são induzidos a vê-la como virtuosa, até idolatrando “mitos” do obscurantismo. É a ignorância e a estupidez a serviço da negação dos valores democráticos e republicanos.
O compromisso progressista é com a democracia: substantiva, direta, participativa, representativa. Democracia com eleições, partidos e vontades livres do poder dissolvente do dinheiro ou das máquinas estatais. O saudoso Carlos Nelson Coutinho (1943-2012) lembrava que “para aqueles que lutam pelo socialismo, a democracia política não é um simples princípio tático: é um valor estratégico permanente, na medida em que é condição tanto para a conquista quanto para a consolidação e aprofundamento da nova sociedade”.
Por isso, defender que a Constituição brasileira estabeleça que as eleições no caso de vacância de cargos do Executivo têm que ser DIRETAS até 6 meses antes do término de cada mandato é absolutamente elementar e democrático. 594 deputados e senadores não podem substituir 144 milhões de eleitores! Nem mesmo se sobre o Congresso Nacional não pairassem questionamentos quanto a eleição de 75% de seus membros graças ao poder do dinheiro de grandes corporações privadas. Mesmo se 1 em cada 3 parlamentares não estivesse sob algum tipo de investigação. Mesmo se as denúncias de compra de projetos e votos por empreiteiras, frigoríficos, bancos, agronegocistas e outros setores do poder econômico fossem vazias. Mesmo se os partidos políticos, salvo honrosas exceções, não tivessem se tornado correia de transmissão de poderosos interesses nacionais e transnacionais.
Só a eleição direta não basta: são imprescindíveis campanhas limpas, com agremiações apresentando projetos e programas, sem o tacão do dinheiro e da compra de votos, com igualdade de oportunidades e “paridade de armas”. Nossas eleições viciadas e emolduradas pelo marketing demagógico têm sido bienais e… banais. Queremos mais qualidade, além dessa duramente conquistada quantidade de pleitos.
Foram eleitos indiretamente, por colégios eleitorais restritos, os marechais Deodoro e Floriano, no início dos anos 90 do século XIX; Getúlio Vargas em 1934; os generais da ditadura (Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo), e Tancredo Neves, na transição pactuada pelo alto para a nossa ainda limitada democracia. Todos em circunstâncias muitos excepcionais. Já está de bom tamanho para quem aposta na cidadania de base como seiva e vida de uma República, e na irrenunciável soberania popular. Não me venham com indiretas!