Por João Américo de Freitas
Todos temos versões idealizadas sobre alguma coisa, alguém ou sobre tudo. Uma mãe assiste ao seu filho em um desfile militar, e o soldado, filho da orgulhosa mãe, em meio ao batalhão, se destaca dos demais. O motivo do destaque é a forma com que o filho marcha, desengonçado, fora de ritmo, sem compasso e sem sincronia com os demais. Por sua vez, a orgulhosa mãe, sem pestanejar, diz: “Impressionante como o meu filho é o único que macha direitinho, os demais deveriam apreender com ele”.
A idealização pode produzir disfunções, e a maior de todas é a desconexão com a realidade, pois, cria-se uma visão distorcida dos fatos e das pessoas, e, por ódio ou por ideologia, se enxerga só o que lhe convém. A verdade é rapidamente substituída pela narrativa, apesar de o mundo apresentar verdades imutáveis, inquestionáveis.
Quando as mortes começaram a eclodir em Manaus por falta de oxigênio, quem é humano logo foi acometido por um sentimento de solidariedade, compaixão e amor. Esse sentimento, penso, deveria ser ativo de primeira hora para qualquer um ou uma que ocupe cargo ou função pública. Não dá para construir política ou políticas públicas sem um sentimento de amor e compaixão. Hannah Arendt, filosofa alemã, já definia que o exercício da política era uma expressão do amor.
O Estado é unidade política e um sistema interdependente, interconectado e fundido e, por esse conceito, de quem é a culpa por faltar oxigênio em uma cidade?
No trato da pandemia, falta para alguns que detêm a reserva de poder humanidade, amor e compaixão, e, principalmente, uma relação madura entre todos os envolvidos, para que se possa gerar confiança, convergência e sentimento de comunidade. Hoje, o que existe é o “nós” e a sua contraposição “eles”. A compaixão e o amor foram, por alguns, abandonados na estrada, pela defesa do poder e da posição ideológica ou política.
Uma lealdade à vida e um sentimento suprapartidário, ou transindividual e político, deveriam ser a tônica desses tempos sombrios e mórbidos e esse sentimento deveria se espalhar entre governados e governantes. Outra função do Estado, para o professor Karl Wolfgang Deutsch, que ensinava a paz na Universidade de Harvard, é a promoção de um ambiente de convergência. Einstein e Freud também pensaram a respeito e entenderam que a cidadania e a construção do Estado devem passar por um sentimento comunitário baseado em ligações por identificação e sentimentos comuns.
Mas não podemos construir paz sem verdade, e a verdade não pode ser substituída pela busca de estímulos e conforto emocionais, baseados em hábitos mentais de busca de informações somente com base nas redes socais. Nesse mundo de pós-verdade, sem um acordo sobre alguns fatos básicos, os cidadãos não podem formar a sociedade civil que permitiria que eles se defendessem de gestões ruins e políticos mal intencionados.
Não existe outro caminho para diminuir as tensões políticas do que a integração e a possibilidade de divisão de verdades em comum, um local onde as verdades podem ser compartilhadas e aceitas por grupos antagônicos. Em um modelo social onde tudo e nada é verdade, pois se for do meu lado é verdadeiro, do lado oposto, falso. Não, a paz só florescerá por um anseio de comunidade, com estreitamento de vínculos sociais, econômicos e políticos.
Precisamos, com um senso de urgência, clarear o escuro, iluminar as sombras com verdade e, com amor, trazer ao nosso meio, pela razão, a amplitude, luminosidade e o brilho de ser solidário e ter empatia. Devemos atender o convite de Hannah Arendt, que nos chama, em seu livro Homens em Tempos Sombrios, a “participar da humanitas; tomar para si o responder perante a humanidade por todos os pensamentos significa viver naquela luminosidade onde se testa a pessoa e tudo o que ela pensa”.
João Américo de Freitas é advogado e comentarista político na Caruaru FM