Artigo – Relações trabalhistas em crise: uma luz necessária e desejada no fim do túnel

*Paulo Sergio João

A imagem é desastrosa e cruel em todo o mundo no enfrentamento da pandemia do Covid-19. O momento social e econômico pelo qual todos estamos passando é um desafio que impõe reflexão dos valores cultivados ao longo da história, não para apontar erros do passado nem se conformar para que não se repitam, mas para buscar outros valores mais fortes e coletivos. Nas relações trabalhistas, levado pelo volume de manifestações de todos os dias, as preocupações dividem opiniões e o cuidado para preservar as instituições é essencial a fim de que a inquietação comum não se transforme em oportunismos. Nós sabemos de onde partimos, mas não sabemos para onde vamos.

Entre nós, a Lei nº 13.979/20 impôs as medidas a serem adotadas para os cuidados de emergência de saúde pública, com isolamento e quarentena. Independentemente das medidas legais de urgência já adotadas ou que venham a ser adotadas em decorrência do estado de calamidade pública, reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6 de 20 de março de 2020, Medidas Provisórias 927, 928, 936/20 e outras disposições legais que se apresentam a cada momento, a base em que os novos parâmetros jurídicos terão necessariamente que levar em conta a força maior, situação transformadora e que atinge o sistema jurídico de forma incontestável.

A força maior está relacionada às forças da natureza e criado pelas condições de trabalho. Trata-se de evento extraordinário inevitável e que não decorreu diretamente da vontade do homem (BELMONTE, Alexandre Agra. Instituições civis no direto do trabalho – curso de direito civil aplicado ao direito do trabalho. Rio de Janeiro. Renovar, 2009).

No direito civil há várias as hipóteses em que a obrigação deixa de ser exigível ou que o contrato poderia se desfazer em razão de fato imprevisível e extraordinário.

Todavia, quando se trata da aplicação dos efeitos da pandemia nas relações contratuais de trabalho, a generalização do conceito parece não ser adequada porque nem todas as situações trabalhistas são atingidas com o mesmo impacto, embora os efeitos sociais e econômicos sejam sentidos por todos. Conforme lições de Flavio Tartuce, “o ponto de partida deve ser sempre cada relação contratual em sua individualidade. É preciso, antes de se qualificar acontecimentos em teoria, compreender o que aconteceu em cada contrato: houve efetivamente impossibilidade de cumprimento da prestação pelo devedor? Ou – hipótese que será necessariamente diversa – houve excessiva onerosidade para o cumprimento da prestação? Ou houve, ainda, algum impacto diverso sobre a relação contratual (como a frustração do fim contratual, o inadimplemento antecipado etc.)? Ou não houve, como é possível, impacto algum? São situações completamente distintas que somente podem ser aferidas à luz de cada contrato e é somente após a verificação do que ocorreu em cada relação contratual que se deve perquirir a causa (ou as causas) de tal ocorrência”.
Portanto, não se trata de adotar regra geral que, pela sua característica de norma, não atenderia a todas as situações.

A passagem por esta crise está a valorizar o princípio da boa-fé, considerando que o trabalho prestado à distância, por exemplo, adquire maior confiança recíproca entre empregado e empregador, com interação que talvez não tivessem anteriormente. Não é o caso de colocar em dúvida a prestação de serviços e o exercício de compliance seja de onde for o local de trabalho.
Além de aguçar a boa-fé nas relações contratuais, este momento acentua a solidariedade entre as pessoas, ainda que distantes. Neste sentido, o contexto de todos os elementos da crise que a pandemia tem gerado, os gestos admitidos e esperados são os de salvação de todos, razão pela qual o enfrentamento da crise não pressupõe o abandono ao desemprego dos trabalhadores. O argumento de força maior por calamidade pública deve ser utilizado para a inclusão social.

Os sindicatos, que se sentem alijados das iniciativas para enfrentamento da crise, embora com raras exceções, colhem o resultado de uma cultura monopolista que, a despeito de querer representar a todos, apresentam fragilidade de aderência. Sindicalismo de categoria e sem vínculo de legitimidade, neste momento, não serviria, data venia, para a mudança urgente e que não se passa de modo uniforme para todos. Nem os sindicatos ditos patronais teriam condições de atendimentos ao setor econômico respectivo.
Neste momento, o olhar deve ser para o futuro, para transformar com segurança jurídica o que desejamos como mundo socialmente justo e equilibrado. Há necessidade de uma concertação social, à semelhança do que houve no final da II Guerra Mundial, em que novos patamares de direitos sociais foram, de modo programático estabelecidos, e cuja finalidade foi a retomada do crescimento econômico e avanço na qualidade das representações coletivas.

Se tivermos o respeito à boa-fé revigorado, a prática da solidariedade, o gesto de acolhimento pela preservação dos empregos, ainda assim o sacrifício de todos terá que valer a pena para a construção de um novo mundo, com valores outros que não aqueles deixados no passado. Não caberia oportunismos em nome da crise. Por esta razão, passar este momento semeando a insegurança e a litigiosidade futura, não contribui para a revisão do passado e na revolução que se espera.

Os temas que preocupam nas relações trabalhistas e as medidas de urgência devem ser entendidas no seu espectro de aplicação com todos os elementos que nos levaram ao confinamento e à crise mundial. As soluções jurídicas estão presentes e podem ser adotadas sempre na preservação dos empregos.

O Ministro Carlos Aires Brito, em artigo de 28-06-16, em O Estado de São Paulo, de forma sempre genial, tratando de momento político da época, no artigo “Viagem sem volta” traz reflexões que se ajustam ao presente momento e, citando a lição de Einstein de que “A mente que se abre para uma nova ideia não retorna ao tamanho primitivo”, significa que “o entendimento mais arejado das coisas opera no indivíduo uma transformação. Mais do que uma simples mudança de ordem subjetiva, uma conversão”. Uma transformação de comportamento e, utilizando-se aqui da citação de Shakespeare “transformação é uma porta que se abre por dentro”.
O momento deve vislumbrar a transformação e esta viagem deve nos levar a uma vida melhor, caso contrário não terá valido a pena e o túnel continuará escuro.

*Paulo Sergio João é advogado e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Fundação Getulio Vargas.

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