Por Maurício Rands
A doutrina de separação de poderes de Montesquieu (O Espírito das Leis, 1748) foi materializada na Constituição Americana de 17/09/1787, que inspirou o nosso constitucionalismo. Somente em 1803, com o caso Marbury v. Madison, ficou estabelecido que o Judiciário tem poder para declarar a inconstitucionalidade de um ato do Congresso. Em sua evolução, a Suprema Corte americana tem alternado momentos de ativismo judicial (décadas de 50 e 60) e de autocontenção (judicial restraint). Mas geralmente havia um equilíbrio entre progressistas e conservadores. Com a ascensão da extrema-direita de Trump, esse equilíbrio foi desfigurado. A última nomeação que cabia a Obama (Merrick Garland) foi bloqueada pelos Republicanos no Senado. A maioria conservadora que se formou (6 x 3) está iniciando um novo período de ativismo. Em 02 de maio, vazou um esboço de voto a ser adotado pela maioria para rever a posição da Corte sobre o aborto. Há 50 anos tem prevalecido o precedente do caso Roe v Wade, que legaliza o aborto até que o feto se torne viável. Outros temas controversos estão em vias de ser reexaminados: armas, separação entre estado e igreja e ações afirmativas. O constitucionalismo americano reconhece que a Corte Suprema pode exercer um papel contramajoritário para defender as liberdades e os princípios fundamentais. Mas, o que hoje se teme é que esse novo ativismo conservador acabe por minar as bases de legitimidade da própria Corte (de 2007 até hoje, sua aprovação caiu de 60% para 40%). Muitos já percebem os ministros da Corte como membros vitalícios de um terceiro poder, não eleito e todo-poderoso.
Algo similar está acontecendo em outros países em que a polarização levou à ascensão de autocratas de ultradireita. Na Hungria, Viktor Orbán tem sido acusado pela União Europeia de tentar submeter o Judiciário ao lhe alterar a composição. Na Polônia, as reformas feitas no Judiciário, inclusive com a criação de câmara disciplinar para os juízes, têm sido acusadas de minarem a independência da magistratura.
No Brasil, o presidente parece se inspirar naqueles líderes autocratas que admira. Dia sim, outro também, ataca o STF e seus membros. Um dos seus amigos fiéis, o deputado Daniel Silveira, foi condenado por incitar a invasão do tribunal e o ataque físico aos seus membros, assim tentando impedir o funcionamento do Poder. O presidente, ao conceder-lhe a graça, arvorou-se em juiz do STF. Em sua instância revisora. Desde a data desse decreto que constrangeu o STF, já se vão 18 dias. O desvio de finalidade apontado pela comunidade jurídica até hoje não foi apreciado pelo STF. Nesse período, soube-se que o deputado desafiou o STF ao desligar a tornozeleira que lhe havia sido imposta por decisão do ministro Alexandre de Moraes.
É fato que o nosso STF tem procurado exercer o seu papel de contenção dos rompantes autoritários do presidente e aliados. Mas não é difícil perceber que a fragilidade técnica e institucional de muitos dos seus membros acaba por debilitar esse exercício tão essencial para o estado de direito. Isso ocorre quando extrapola suas atribuições e usurpa competência de outros poderes. Quando pratica um “populismo de toga”. Como no caso da “desnomeação” de um delegado para o comando da Polícia Federal sob o argumento de que ele poderia vir a beneficiar a família do presidente. Ou como na “desnomeação” do ex-presidente Lula para o cargo de ministro da Casa Civil. Ou quando adota outras decisões juridicamente erradas. Como a de abrir um inquérito – o das fake news – sem que a Procuradoria Geral, a titular da ação penal, o provocasse. E com o relator designado sem o sorteio previsto no art. 66 do seu Regimento Interno. Ou quando vaidosamente seus membros se expõem nas mídias e em seminários realizados aqui e no exterior, emitindo opiniões sobre temas que depois poderão vir a julgar. Por isso, nosso STF tem perdido o respeito e a legitimidade não somente por causa dos ataques da ultradireita bolsonarista.
Governantes autocratas ora hostilizam ora manipulam as Supremas Cortes. Como nos Estados Unidos, as Cortes embarcam no jogo. Tornam-se mais ativistas. Assim, dividem mais suas sociedades. O resultado é a erosão da legitimidade e da confiança dos seus povos em suas Cortes. Para evitá-la, clama-se por uma volta ao judicial restraint. Que o Judiciário não siga se arvorando em poder que substitui os dois outros que são eleitos pelo povo. Que exerça suas atribuições com mais contenção, moderação e estudo. Para ampliar sua legitimidade, algumas reformas poderiam ser pensadas. Como o estabelecimento de um código de ética mais preciso e rigoroso. Ou como a substituição da vitaliciedade por mandatos. Que requisitos mais específicos sejam criados para aferição do notável saber jurídico e da reputação ilibada de que fala o art. 101 da CF/88. E que o Senado, nas sabatinas, realmente exerça suas atribuições para aferir a satisfação desses requisitos pelos nomeados.
Maurício Rands, advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford