Três meses depois de anunciar a intenção de promover uma transição energética de forma “ágil, responsável e justa”, o governo de Pernambuco recebeu, nesta terça, 27, das mãos de representantes de comunidades afetadas pelos impactos dos parques eólicos e solares, um relatório com mais de 100 sugestões a serem adotadas no processo de licenciamento.
O documento, intitulado Salvaguardas Socioambientais para Energia Renovável, é resultado de uma construção coletiva de medidas de mitigação propostas por mais de 30 entidades – a maioria de povos e de populações tradicionais do Nordeste. “A expansão de renováveis tem intensificado conflitos territoriais, gerado ameaças à biodiversidade, agravado injustiças e danos socioambientais aos povos do campo, da floresta, das águas e aos seus ecossistemas”, traz a introdução do relatório.
Exemplos desses impactos podem ser observados em Pernambuco. “Os aerogeradores fazem um barulho constante, que abala a saúde mental das pessoas que moram perto. Na aldeia Baixa do Lero (Tacaratu, PE) os moradores escutam dentro de casa”, diz Alexandre Santos, do povo pankararu e coordenador de Comunicação da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), entidade que participou da elaboração do documento de salvaguardas.
Outro problema apontado pelo indígena é o desaparecimento de plantas utilizadas em rituais sagrados.”Temos encontrado muita dificuldade em achar cansanção (uma urtiga), umbuzeiro, croá. O espaço onde tinha bastante cansanção é onde estão a usina solar e a eólica, mas com o desmatamento da caatinga não tem mais”, afirma Alexandre Santos. “Nossa espiritualidade vem da natureza. Os impactos ambientais afetam nosso modo de vida, nossa cultura.”
Com as centrais eólicas e solares, vêm as linhas de transmissão de eletricidade. O sociólogo Luís Soares, do conselho gestor da Associação de Educação, Arte, Cultura e Agroecologia Sítio Ágatha, no município pernambucano de Tracunhaém, cita os transtornos causados pelas torres de transmissão instaladas no local: elas exerceram um profundo impacto sobre a fauna, a flora e o bem-estar dos agricultores familiares dos assentamentos rurais de reforma agrária Chico Mendes II, Ismael Felipe e Nova Canaã, na zona rural de Tracunhaém.
“A justificativa é que a energia eólica é uma energia limpa; no entanto, a realidade observada é de devastação ambiental, apropriação de terras e ataque aos direitos humanos nesse território.” Para Luís Soares, as salvaguardas podem desempenhar um papel crucial na promoção de uma abordagem mais sustentável e justa para a implantação de projetos de energia eólica e solar, garantindo a proteção dos direitos das comunidades locais e do meio ambiente, bem como promovendo a inclusão e equidade de raça e gênero.
A Secretaria de Meio Ambiente, Sustentabilidade e de Fernando de Noronha de Pernambuco (Semas-PE) reconhece, na ação anunciada em novembro (Decreto Nº 55.863), a necessidade de uma visão sistêmica e integrada da sociedade, em que o estabelecimento de padrões de produção e consumo tenha também a capacidade de reduzir desigualdades e vulnerabilidades, e de regenerar a natureza. Por meio do decreto estadual, de 28/11/23, a Semas-PE instituiu um grupo de trabalho para subsidiar a elaboração de normas para o licenciamento ambiental de empreendimentos de geração de energia elétrica a partir de fontes eólica e solar.
Para a secretária executiva de Sustentabilidade da Semas-PE, Karla Godoy, o documento de salvaguardas é de extrema importância para Pernambuco, já que o estado está em processo de criação da legislação do licenciamento de empreendimentos de energia renovável.
“É super importante ter um documento desta magnitude em mãos para que o meio ambiente, tanto a fauna quanto a flora, também a sociedade civil não sofram com a geração das energias renováveis que são tão importantes e necessárias. Esse documento também pode auxiliar a gente na criação da legislação do licenciamento evitando problemas futuros no meio ambiente e na sociedade civil”, ressalta.
Entre as salvaguardas propostas estão uma distância mínima de 2 quilômetros da torre eólica para edificações (hoje esse limite não existe) e a priorização de áreas degradadas para instalação de centrais de energia, a fim de evitar mais desmatamento. E ainda a realização de estudos da poluição sonora, incluindo os infrassons emitidos pelas torres eólicas. Os infrassons, inaudíveis aos seres humanos, são apontados como causadores de distúrbios do sono. Também solicita estudos dos efeitos da sombra dos aerogeradores, conhecido como efeito estroboscópico, igualmente apontado como prejudicial à saúde.
Na avaliação do Plano Nordeste Potência, que apoiou a construção do relatório, as mais de 100 medidas mitigatórias vão ao encontro da política ambiental de Pernambuco. “Esperamos que o documento seja útil para o estado para compatibilizar a produção de energia com o desenvolvimento social, as políticas rurais, a segurança alimentar e a conservação da natureza, com respeito a todos os povos e comunidades que formam Pernambuco”, diz a coordenadora de articulação do plano, Fabiana Couto.
Durante o processo de elaboração do documento, representantes das comunidades participaram de três encontros presenciais, realizados em Salvador (BA) e no Recife (PE), promovidos pelo Plano Nordeste Potência, iniciativa resultante de uma coalizão de ONGs empenhadas em fazer com que transição energética, além de levar em consideração o meio ambiente, ocorra de forma socialmente justa e inclusiva.
Pernambuco é o segundo Estado do Nordeste a receber o relatório Salvaguardas Socioambientais para Energia Renovável. O primeiro foi Alagoas, em 19 de fevereiro, às Secretarias do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos e de Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, além do Instituto do Meio Ambiente de Alagoas (IMA) e da representação local do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA). O próximo será o Ceará, no dia 4 de março.