Por Frei Luciano*
Carmo da Cachoeira (MG), 24 de abril de 2019 – Definitivamente, o mundo adulto ainda precisa evoluir para honrar seu papel frente às crianças. Uma contribuição com grande potencial para enfrentar esse déficit é a chamada ‘Pedagogia de Emergência’, método que prepara educadores para interagir com crianças e adolescentes que enfrentaram grandes perdas ou crises: guerras, desastres naturais, confrontos, ou mesmo a criminalidade e a violência.
Desenvolvido a partir de 2006 com base no sistema educacional Waldorf, o método visa situações que têm ocorrido de forma crescente. Funciona com jovens impactados entre milhares de sírios em fuga do conflito armado que destrói seu país, ou outros milhares de refugiados que chegam à Europa de inúmeros países em embarcações improvisadas. No Brasil, temos vítimas de desastres como o de Brumadinho (MG), do incêndio da boite Kiss no Rio Grande do Sul, ou da criminalidade e violência que invadem comunidades e escolas. O exemplo mais recente que gerou manchetes é o ataque a tiros que deixou oito mortos em Suzano, na Grande São Paulo.
Um esforço na direção certa ocorreu no início de março em Roraima, cenário repleto de crianças refugiadas da Venezuela que têm vivido as perdas e traumas que se encaixam perfeitamente nesse foco. Por iniciativa da Fraternidade – Federação Humanitária Internacional (FFHI), que administra acampamentos de refugiados em Roraima, um curso reuniu 140 educadores, em sua maioria venezuelanos, liderados pelo psicopedagogo e educador social Reinaldo Nascimento, pioneiro na implementação da Pedagogia de Emergência no Brasil e colaborador voluntário da FFHI.
Ele chama a atenção para as inúmeras demandas existentes no Brasil para esse tipo de atendimento, em que a violência deixa marcas sem critério e em todos os contextos sociais. “No refúgio dos venezuelanos, na Faixa de Gaza ou na guerra da Síria, a origem da violência é mais fácil de se enxergar, mas na rotina das ruas das grandes cidades, infelizmente as causas não são tão fáceis de ser apontadas”, observou.
A programação realizada com sucesso nos abrigos de Roraima, agora será implementada em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e a Universidade Federal de Roraima (UFRR), para capacitar agentes do ensino público daquele estado e de Boa Vista e Pacaraíma, principais municípios afetados pela crise migratória. O esforço deve gerar uma reflexão essencial diante das proporções das tragédias que o cotidiano vem produzindo. Segundo a ONU, mais de 30 milhões de crianças espalhadas pelo mundo hoje estão em situação de refúgio e, nesse contexto, fortemente impactadas por perdas de toda sorte.
Seja no Brasil ou em outros continentes, principalmente nos países em desenvolvimento, diversos recortes podem ser identificados em que a Pedagogia de Emergência faz sentido. Pesquisa do Unicef realizada em 2017 revela que a cada sete minutos uma criança ou um adolescente, entre 10 e 19 anos, morre em algum lugar do mundo vítima de homicídio ou de alguma forma de conflito armado ou violência coletiva. Ataques armados a escolas estão incluídos entre as seis violações graves condenadas pelo Conselho de Segurança da ONU. Em 2016, foram registrados aproximadamente 500 ataques ou ameaças de violência contra escolas em 18 países ou regiões ao redor do mundo.
Cerca de 130 milhões de estudantes no mundo, ou um em cada três nessa faixa etária, afirmam que sofrem bullying regularmente. No Brasil, no mesmo levantamento, 43% de meninos e meninas da 6ª série, com idade entre 11 e 12 anos, disseram que sofreram bullying. Ainda segundo o relatório, esses menores foram roubados, insultados, ameaçados, agredidos fisicamente ou maltratados.
Prever onde e quando ocorrerá o próximo episódio nefasto é quase impossível, mas além de inúmeras ações preventivas, que cabem às autoridades, fica claro que um dos níveis de intervenção diz respeito à educação. Crianças impactadas por essas situações exibem sintomas de medo, pânico, distúrbios do sono, problemas na alimentação, no relacionamento e desenvolvimento pessoal. É nesses contextos que a Pedagogia de Emergência pode produzir algum alívio.
É preciso amparar emocionalmente o ambiente escolar que recebe essas crianças. É preciso também amparar o educador e os familiares para que, em seu papel de liderança, façam a diferença entre crianças atingidas e promovam a retomada de uma rotina de vida que traga de volta, entre outros aspectos, o bom desempenho escolar.
O caminho que a Pedagogia da Emergência propõe, com potencial para resultados imediatos, é o da alegria. Atividades lúdicas e coletivas trazem de volta a harmonia ao ambiente escolar. Todos os atores de um episódio de violência precisam de amparo, mas as crianças precisam mais dessa cura da alma. O trauma, afinal, é uma ferida da alma, e para isso não há pomadas, ataduras ou medicamentos.
Acolhimento, apoio e relações de confiança e proteção que vêm dos adultos são os princípios de soluções para lastrear o desenvolvimento renovado das crianças. O caminho para chegar à cura da alma está no resgate da alegria, nas ações que requalifiquem o registro do trauma, como a música, o desenho, as brincadeiras em grupo e em casa.
Para crianças e famílias que vivem o rescaldo de tantas feridas, é fundamental que se busque o alento. A alegria e o sorrir devem sempre prevalecer sobre qualquer trauma.
* Frei Luciano é gestor geral da FFHI, está na Comunidade Figueira desde 1989 e dedica-se ao desenvolvimento das Comunidades e de suas principais atividades. As Missões Humanitárias são as demandas mais relevantes, considerando as situações emergenciais e crises humanitárias que se deflagram no mundo.