A paisagem sonora urbana brasileira tem sido cada vez mais dominada pelo estrondo de motocicletas com escapamentos modificados. O que para alguns representa uma simples customização de veículo, constitui na realidade um grave problema de saúde pública e uma flagrante violação da legislação vigente.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a exposição prolongada a ruídos acima de 65 decibéis – muito abaixo do produzido por escapamentos adulterados – pode desencadear uma cascata de problemas de saúde. O barulho excessivo não é apenas um incômodo passageiro; ele interfere diretamente no funcionamento do organismo humano, provocando desde distúrbios auditivos até alterações cardiovasculares significativas.
Quando uma motocicleta com escapamento modificado passa em alta velocidade, o ruído gerado pode ultrapassar 110 decibéis, nível comparável ao de uma britadeira industrial ou um show de rock a poucos metros do palco. Este volume sonoro dispara no organismo uma resposta de estresse, com liberação de cortisol e adrenalina, elevação da pressão arterial e aceleração dos batimentos cardíacos.
Para os idosos, especialmente aqueles com condições cardíacas preexistentes, cada sobressalto causado por estes ruídos representa um risco adicional à saúde. Crianças em fase escolar têm sua capacidade de concentração e aprendizado comprometidas. Pessoas com transtornos do espectro autista, que frequentemente apresentam hipersensibilidade sensorial, podem sofrer crises intensas de desregulação emocional.
Os distúrbios do sono talvez sejam os efeitos mais disseminados da poluição sonora. A interrupção do ciclo de sono, especialmente durante as fases profundas, compromete a recuperação física e mental do organismo. Estudos científicos demonstram que a privação crônica de sono está associada ao aumento do risco de diabetes, obesidade, depressão e comprometimento do sistema imunológico.
O impacto não se restringe aos humanos. Animais domésticos, dotados de audição muito mais sensível que a nossa, sofrem intensamente com o barulho excessivo. Veterinários relatam aumento nos casos de estresse crônico em cães e gatos expostos constantemente a ruídos intensos, manifestando comportamentos como tremores, salivação excessiva, micção involuntária e até automutilação.
Na fauna silvestre urbana, o problema é igualmente grave. Aves alteram seus padrões de canto e comunicação, comprometendo comportamentos reprodutivos. Estudos ecológicos demonstram que a poluição sonora em áreas urbanas e periurbanas contribui significativamente para o desequilíbrio dos ecossistemas locais.
O mais alarmante neste cenário é que se trata de um problema perfeitamente evitável, já que a legislação brasileira é clara quanto à proibição destas modificações. O Código de Trânsito Brasileiro, em seu artigo 230, estabelece como infração grave “conduzir o veículo com descarga livre ou silenciador de motor de explosão defeituoso, deficiente ou inoperante”, prevendo multa e retenção do veículo para regularização.
A Resolução CONTRAN nº 252/1999 vai além, estabelecendo limites máximos de ruído para veículos automotores. Para motocicletas, dependendo da cilindrada, o limite varia entre 80 e 84 decibéis – muito abaixo do produzido pelos escapamentos modificados. Adicionalmente, a Lei dos Crimes Ambientais caracteriza como contravenção penal a perturbação do sossego alheio por meio de poluição sonora.
Apesar do robusto arcabouço legal, a fiscalização permanece insuficiente. A falta de equipamentos adequados para medição de decibéis, o número reduzido de agentes fiscalizadores e a ausência de blitze específicas para verificação de escapamentos contribuem para a sensação de impunidade que alimenta esta prática.
O enfrentamento efetivo deste problema exige uma abordagem integrada: intensificação da fiscalização com uso de decibelímetros, campanhas educativas sobre os impactos na saúde pública, e criação de canais eficientes para denúncias. É fundamental que a sociedade compreenda que o direito ao sossego e à saúde é coletivo e se sobrepõe ao desejo individual de modificar veículos.
O barulho excessivo não é apenas uma questão de conforto, mas um grave problema de saúde pública que afeta desproporcionalmente os mais vulneráveis. Em um momento em que tanto se discute qualidade de vida urbana, é imperativo que autoridades e sociedade reconheçam a gravidade da poluição sonora e atuem decisivamente para mitigá-la. O silêncio, mais que um luxo, é uma necessidade fisiológica e um direito de todos.
Marcelo Rodrigues, é advogado especialista em direito ambiental e urbanístico, consultor técnico em sustentabilidade da Prefeitura Municipal de Caruaru, ex-Secretário de Meio Ambiente do Recife.