Por Maurício Rands
A Internet surgiu com promessas audaciosas. A de que a livre circulação de informações, compartilhada por todos, liberaria o potencial do conhecimento humano. Como todos passariam a ter vez e voz, o debate não mais seria monopolizado pelos canais tradicionais: a academia, a mídia profissional, os institutos de ciência e pesquisa, as agências de inteligência e as instituições públicas. Mas algo deu errado. As grandes plataformas de mídia digital concentraram um grande poder. Para que os mortais possamos nos exprimir na web, temos que fazer uso dessas plataformas. Google, Facebook, Instagram, Twitter, Tik-Tok organizam o que vai ser mostrado nas telas de bilhões de seres humanos. Ou seja, nossa voz chega (ou não chega) às outras telas de acordo com o controle que essas empresas têm sobre as plataformas ou comunidades digitais. Elas organizam o que vai prevalecer na grande disputa pela captura da atenção dos internautas. Através de algoritmos nada transparentes. Que incentivam conteúdos que lhes dão a audiência que lhes permite lucrar intermediando-a aos anunciantes. Um modelo de negócios que se baseia numa forte monetização da audiência. Audiência que é potencializada pelo escatológico, ultrajante e falso. Operou-se uma combinação de algumas características intrínsecas da nossa psique com a organização dos algoritmos das redes sociais.
Essa nova sociedade da informação, naturalmente, passou a ser cenário da eterna disputa por poder. Poder aqui entendido como a “faculdade de impor um relato sobre os relatos alheios concorrentes”, na expressão do professor João Maurício Adeodato (Introdução ao Estudo do Direito, 2023). Duas tendências passaram a se nutrir daquela combinação da nossa psique com os algoritmos. De um lado, surgiu uma direita autoritária fortalecida por capturar os ressentimentos dos perdedores da globalização e dos incomodados pelo empoderamento das minorias identitárias. Os “trolls” (provocadores) e outros disseminadores da desinformação mobilizaram-se para atacar os tradicionais centros de produção de conteúdo. Por discordarem desses conteúdos, buscaram desmoralizar os seus autores. Para isso, usaram a tática de confundir a realidade objetiva com alguma outra imaginada. A tal realidade alternativa ou pós-verdade. A ênfase passou a ser a difusão massiva de conteúdos tóxicos, mentirosos, injuriosos e ultrajantes que exploram emoções, ódios e ressentimentos. Com alguns objetivos: (i) capturar a atenção dos internautas; (ii) minar a credibilidade da informação produzida pelas instituições tradicionais – academia, jornalismo profissional, etc; (iii) erodir a capacidade das pessoas de distinguirem o verdadeiro do falso; e, (iv) atacar a própria ideia de existência de uma realidade objetiva.
Uma outra tendência também conectada à emergência das mídias digitais é a chamada cultura do cancelamento. Um ataque ao chamado liberalismo epistêmico. Ou seja, a um conjunto de valores, normas e instituições que avançam o conhecimento a partir da interação de múltiplos agentes guiados pela concepção de que não existe uma palavra final, nem uma autoridade última. Essa segunda tendência, mais vinculada à chamada esquerda identitária, também se agudizou a partir do intenso fluxo de conteúdos produzidos através da mídia digital. Revela uma inclinação por minar a diversidade de opiniões e proposições que é própria do espírito científico. A tentativa de uniformização de pensamentos sobre os temas identitários choca-se com a tradição pluralista. Resvala, em alguns casos, para atitudes de intolerância que se materializam nos chamados cancelamentos. Frequentemente, induzindo professores e alunos nos campi a aceitarem passivamente posições das quais discordam. Por se sentirem coagidos, chegam até mesmo a praticarem a autocensura. Muito forte no ambiente acadêmico americano, o fenômeno implica uma uniformidade coercitiva que inibe o contraditório e o diálogo construtivo que são essenciais à construção do conhecimento. Essa cultura do cancelamento é facilitada pela humana tendência do viés cognitivo da conformidade (adequação ao pensamento do grupo). Involuntariamente acaba por alimentar ressentimentos que são manipulados pela direita autoritária. No limite, chega a diminuir a força de reivindicações legítimas de empoderamento feminino, e de combate à homofobia, à transfobia e aos preconceitos étnicos e raciais. Por alguns motivos. Primeiro, porque suprime a diversidade de hipóteses e valores que fortalecem o conhecimento e a democracia. Depois, porque, ao se distanciar do chamado liberalismo epistêmico, isolam-se de amplos segmentos que poderiam ser convencidos para a justeza das causas de combate às discriminações contra as minorias. E, finalmente, porque alimentam o discurso de ódio da direita autoritária e a sua capacidade de sensibilizar os ressentidos que não concordam com as culturas identitárias de esquerda.
Maurício Rands, advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford