Por Marcelo Rodrigues
A crise hídrica urbana é sem dúvida um dos maiores desafios enfrentados pelas cidades, resultado de uma complexa junção de fatos naturais e de ações humanas. No Nordeste do Brasil, a escassez histórica de água é um espelho da má gestão dos recursos hídricos, combinado com o crescimento desordenado das cidades, políticas públicas ineficazes e da mudança do clima. Não obstante os efeitos produzidos pelas mudanças climáticas, como o aumento exponencial de secas prolongadas e a irregularidade dos ciclos de chuvas, sejam axiomáticos, não há como negar a existência de uma má administração dos recursos hídricos e a ausência de planejamento integrado são determinantes no desdobramento da crise.
Os efeitos das mudanças climáticas no que pese os recursos hídricos são cada vez mais catastróficos. Tais variações não afetam apenas a quantidade de água disponível para consumo humano e dos animais não humanos, afetam diretamente a qualidade da água, e em decorrência disso os eventos do clima extremo exige um tratamento diferenciando e compromete o abastecimento.
Um fator cada vez mais preocupante, é que as cidades por possibilitarem chances reais de trabalho tem levado a um crescimento acelerado e desordenado das mesmas, e na maioria das vezes a ausência de planejamento e sem a ampliação das infraestruturas hídricas agravam a crise. As redes de abastecimento e distribuição de água, na maioria cidades brasileiras são defasadas e ineficientes, e não conseguem suprir à demanda sempre crescente, o que resulta em perdas significativas de água tratada que não chegam ao destino. É nesse cenário caótico onde a urbanização não consegue chegar na velocidade das ocupações, com a ausência de saneamento onde o esgoto a céu aberto e o destino final de resíduos nos corpos d’água comprometem ainda mais a qualidade da água, tornando-a apropriável para consumo e afetando a biodiversidade local.
Além disso, as cidades brasileiras, especialmente no Nordeste, enfrentam dificuldades para garantir um fornecimento contínuo e confiável de água para seus habitantes. A falta de investimentos em tecnologias de gestão hídrica, como sistemas de armazenamento eficientes, tratamento de águas pluviais e reuso de água, impede que as cidades se preparem adequadamente para os períodos de escassez. A gestão centralizada, frequentemente marcada pela burocracia e pela falta de coordenação entre diferentes esferas do poder público, também dificulta a implementação de soluções mais eficazes e inclusivas. Quando as cidades não têm uma estratégia bem definida para a distribuição de água e o tratamento de esgoto, a crise se torna ainda mais aguda, afetando a saúde pública e exacerbando as desigualdades sociais.
Nesse panorama, a criação e o fortalecimento dos Comitês de Bacia Hidrográfica são cruciais. Esses comitês têm a missão de construir a gestão integrada e descentralizada dos recursos hídricos, incluindo não só os gestores públicos, mas ouvindo e comprometendo os usuários e a sociedade civil no cerne das discussões, ao promover um espaço para o debate compartilhado para a tomada de decisões coletivas sobre o uso da água, e é nesse sentido que os comitês desempenham seu papel de importância ao tornar a matéria de interesse como público com diferentes setores da sociedade a participarem efetivamente da fiscalização e da gestão dos recursos hídricos. No Nordeste, em particular, a atuação desses comitês tem sido cada vez mais imperiosa. Eles contribuem a coordenar ações entre municípios e Estados, viabilizam a conscientização sobre a relevância da água, buscam alternativas coletivas para melhoria a distribuição de forma e uso sustentável da água, mais especialmente em épocas de seca.
Dessa forma, os Comitês de Bacia Hidrográfica concomitantemente com o plano local de ação climática dos municípios atuam não só na fiscalização do uso da água, mas também na promoção de soluções inovadoras, como o armazenamento de água da chuva e a implementação de sistemas de irrigação mais eficientes, o reuso de água que podem reduzir o desperdício e aumentar a disponibilidade de água. Ademais, esses comitês cumprem um papel essencial na proteção das áreas de recarga dos aquíferos e na preservação das nascentes, córregos e dos rios urbanos, garantindo que a qualidade da água seja mantida a longo prazo.
Deve-se considerar que há também uma distribuição desigual da água, no que pese as áreas litorâneas que contam com fontes de abastecimento mais estáveis, em contrapartida o interior sofre com a aridez e a dependência de açudes e cisternas. Nesse sentido, não se pode deixar de considerar que a escassez de água nessas áreas tem impactos diretos na qualidade de vida, na agricultura, na indústria, comércio e na saúde pública, corroborado com a ausência de um planejamento urbano eficiente, aliado ao crescimento das cidades sem a devida infraestrutura hídrica, resulta em episódios de colapso em algumas regiões, onde a água se torna um bem exíguo e disputado.
Sendo assim, a crise hídrica urbana não deve ser atribuída apenas à mudança do clima, mas a falta de diversos fatores como o planejamento inadequado e a gestão despreparada historicamente no trato dos recursos hídricos em uma região localizada abaixo da linha de Equador. E é nesse sentido que enfrentar esse desafio, deve passar pelo conjunto de todos os agentes interessados em minimizar os efeitos da pouca água nas cidades nordestinas, e sendo assim, faz-se necessário um esforço comum que envolva a criação de políticas públicas eficazes, o fortalecimento dos comitês de bacia hidrográfica e a implementação de práticas sustentáveis no uso da água. As cidades do Nordeste, em particular, precisam de planos locais de ações climáticas, e de soluções criativas e colaborativas para garantir a disponibilidade de água para todos, especialmente em tempos de crise. A união entre as esferas governamentais, os comitês e a sociedade civil será fundamental para garantir que os recursos hídricos sejam geridos de forma sustentável, garantindo o acesso democrático à água para as gerações futuras e a qualidade de vida nas áreas urbanas.
Marcelo Augusto Rodrigues, é advogado especialista em direito ambiental e urbanístico, ex-Secretário de Meio Ambiente do Recife, e sócio proprietário do escritório de advocacia Marcelo Rodrigues Advogados.