Fracasso moral

Por Maurício Rands

Como não se solidarizar com a dor dos familiares dos 1.400 israelenses mortos por terroristas que invadiram seu país, casas, kibutzes e até um festival rave? Como não sentir o sofrimento dos parentes dos 229 israelenses sequestrados pelo Hamas? Como não entender o drama do povo judeu perseguido pelo holocausto nazista e vítima por séculos da diáspora e do estigma nos quatro cantos do planeta? Como não apoiar o pedido feito por manifestantes em Tel Aviv implorando que seu governo promova um cessar-fogo para negociar a libertação dos seus familiares mantidos em cativeiro pelo Hamas e sob o risco de morrerem vítimas de bombardeios disparados pelo seu próprio país?

Quando estive em Tel Aviv e Jerusalém, fiquei impressionado com o stress das pessoas mesmo num momento em que não havia guerra declarada. Mas logo percebi que não é fácil viver sob o ódio dos vizinhos e a ameaça de grupos terroristas que atuam para destruir o estado de Israel.

Como não sofrer com os 2,3 milhões de palestinos condenados à miséria, isolados numa prisão a céu aberto, agora sofrendo com bombardeios que já mataram 7.800 pessoas? Como ficar indiferente ao desespero de milhões que vêem suas residências, escolas, unidades de saúde, escritórios e estabelecimentos comerciais serem dizimados pelos mísseis de Israel? Como aceitar que milhares de crianças percam seus pais sob os escombros das bombas ou elas próprias sejam mortas ou mutiladas? Como não se entristecer ao imaginar como crescerão essas crianças sobreviventes a tanta destruição e ao ódio que vai ser alimentado pela reação desproporcional de Israel?

Como deixar de se informar que, dentro de Israel, existem muitas vozes respeitáveis, como a do ex-primeiro-ministro Ehud Barak e a do atual deputado Ofer Cassif, que são contrárias à forma como o governo de Netanyahu está conduzindo a guerra contra o Hamas? Como não perceber que a punição coletiva que Israel está impondo à população civil palestina acaba por alimentar o antissemitismo no mundo inteiro? E que, assim, uma consequência inintencional da invasão de Gaza é a satisfação dos objetivos do Hamas de disseminar o ódio contra o povo judeu? Como não imaginar que essa reação desmedida vai dificultar ainda mais a retomada de negociações com o mundo árabe para que, um dia, seja possível a solução da paz com dois estados soberanos?

Como não entender que os limites do direito internacional foram transpostos com a proibição e retardo dos comboios de ação humanitária providenciados por organismos como Acnur e Médicos sem fronteiras? Como não concluir que é crime de guerra promover a punição coletiva de todo o povo palestino por uma ação terrorista de um grupo que lhe governa ditatorialmente e que não pode ser confundido com o próprio povo? Como ser ingênuo a ponto de acreditar que todos os mísseis disparados por Israel em Gaza destinam-se a “alvos militares”?

Como aceitar o apoio unilateral dos EUA ao exercício desproporcional da legítima defesa por Israel e ao cometimento de crimes de guerra proibidos pela Convenção de Genebra? Como relativizar o veto dos EUA à moção apresentada pelo Brasil no Conselho de Segurança da ONU por uma pausa humanitária de socorro à população do território que está há três semanas sob bombardeio e bloqueio de eletricidade, água, remédios, mantimentos e comunicação? Como não criticar o Ocidente por ter silenciado diante da atitude do governo extremista de Netanyahu de ampliar e radicalizar a colonização da Cisjordânia? Como achar natural a tática do governo de Israel de isolar os palestinos em Gaza, condená-los à miséria e à violência, e deixá-los vulneráveis ao governo terrorista do Hamas? Como não perceber o equívoco estratégico das políticas violentas e radicais do governo de Israel que enfraqueceram a autoridade palestina na Cisjordânia, hoje governada por um desmoralizado e corrupto Al Fatah que, sob a liderança de Yasser Arafat, renunciara à resistência armada e aderira ao projeto de paz dos acordos de Oslo em 1993?

Essa guerra Israel-Hamas realça nosso lado sombrio ao justificar a violência, o ódio e o extermínio desumanizando o outro, o adverso. George Lucas, em Star Wars, fez Darth Wader nascer das luzes para, depois de exposto às guerras e ao sofrimento, acabar se tornando um personagem sombrio, do lado obscuro da Força. E, como lembra a banda Pink Floyd, em sua canção Us and Them, (no disco The Dark Side of the Moon), a humanidade tem uma tendência de, separando-se entre o “nós” e o “eles”, acabar por desumanizar o outro. Foi assim na escravidão e em todas as guerras. Deveríamos ouvir o Papa Francisco: “La guerra non risolve alcun problema: semina solo morte e distruzione, aumenta l’odio, moltiplica la vendetta. La guerra cancella il futuro.” Para os que sonhamos com as luzes da paz, da empatia e da democracia, o momento é de muita tristeza. Fracasso moral generalizado.

Maurício Rands, advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford

 

Natural do Rio de Janeiro, é jornalista formado pela Favip. Desde 1990 é repórter do Jornal VANGUARDA, onde atua na editoria de política. Já foi correspondente do Jornal do Commercio, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo e Portal Terra.