O Patrimônio Imaterial ainda não é um termo tão conhecido dos brasileiros. Mas Pernambuco é guardião de grandes riquezas desse patrimônio. Só no Estado são 11 bens reconhecidos como Patrimônio Cultural do Brasil dentre eles a Feira de Caruaru, os Maracatus, o Caboclinho, o Cavalo-Marinho e o Frevo, este último reconhecido como Patrimônio da Humanidade. Fato é que, mesmo que esta expressão não seja tão conhecida, o patrimônio imaterial é intensamente construído e vivido pelos seus praticantes e é o resultado dos mais preciosos valores da humanidade. Pelos cinco sentidos a imaterialidade se materializa. Os cheiros e sabores tão presentes no fazer o queijo mineiro, na cajuína piauiense ou no acarajé da baiana trazem um tempero comum: os saberes ligados aos seus fazeres tradicionais.
O toque das mãos pode ser suave na confecção da renda irlandesa e na produção das cuias indígenas, ou firmes nas palmas de uma roda de capoeira. A audição é agraciada com os mais diversos tipos de batuques dos maracatus, sambas ou carimbó, e o corpo, sem perceber, acompanha o movimento histórico da ancestralidade. Já a visão, embevecida com a manifestação do teatro de bonecos, ou nos versos de um cordel, brilha no transitar das feiras ou no encantamento de rituais e celebrações.
E toda a diversidade dessa riqueza cultural, reconhecida mundialmente, ganhou, há 20 anos, um marco importante na sua história. Em 04 de agosto de 2000, o Decreto 3.551 era instituído e reforçava os direitos culturais ao apresentar uma política pública voltada para a identificação, reconhecimento, apoio e fomento ao Patrimônio Cultural Imaterial. Desde então, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), junto com diversos parceiros da sociedade, tem executado a Política de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial que vem documentando, promovendo, preservando e valorizando, cada vez mais, as referências culturais dos mais variados grupos formadores da sociedade brasileira, por meio do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI).
Ao longo de duas décadas de atuação, 48 bens já foram registrados como Patrimônio Cultural do Brasil; sendo seis deles considerados pela Unesco como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. E para cada um desses bens – que detêm continuidade histórica, possuem relevância para a memória nacional, são transmitidos de geração a geração e constantemente recriado pelas comunidades em função de seu ambiente, sua interação com a natureza e sua história – são desenvolvidas ações de salvaguarda que viabilizam a melhoria das condições de sustentabilidade dos saberes e práticas culturais.
Também completando 20 anos, está o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) que traz cerca de 160 pesquisas sobre territórios e bens culturais em todas as regiões do país. Ainda em 2020, também se celebra os 10 anos do Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL), que já reconheceu sete línguas como Referência Cultural Brasileira, sendo seis indígenas e uma de imigração.
Todo este trabalho tem como objetivo buscar o engajamento dos detentores para a gestão e sustentabilidade de suas práticas, uma vez que o Patrimônio Cultural é um importante ativo para o desenvolvimento econômico e social.
Referência para o Mundo
A Política de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial é exemplo e inspiração para o mundo, pois o Decreto 3.551 de 2000 foi influência direta para a elaboração da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, aprovada em 2003 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), o primeiro instrumento internacional sobre o tema.
A experiência do Brasil também foi determinante para a criação do Centro Regional para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da América Latina e Caribe (Crespial), que reúne 16 países da região. Em âmbito nacional, diversos estados e municípios também têm se baseado na política federal como fundamento e inspiração para a elaboração das legislações locais e a tarefa de expandir os princípios e diretrizes dessa política é um atual desafio.
Foi o intelectual e poeta paulistano Mário de Andrade quem deu início à reflexão sobre manifestações culturais que, décadas mais tarde, viriam a ser entendidos como “patrimônio imaterial”. Ainda em 1936, Mário de Andrade afirmava que o Patrimônio Cultural da nação compreendia muitos outros bens além de monumentos e obras de artes.
A partir dos anos 50, vários intelectuais e defensores da cultura popular se mobilizaram em torno da Comissão Nacional de Folclore, criada em 1947, e esse movimento foi base para a criação, em 1958, da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro que deu origem ao Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, hoje incorporado ao Iphan, que se dedicou à preservação da cultura popular e do folclore ao longo destas décadas.
Nos anos de 70 e 80, a proposta de Mário de Andrade e as bem sucedidas experiências dos folcloristas serviram de inspiração para as experiências desenvolvidas no Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC) e na Fundação Nacional Pró-Memória (FNPM), sob a liderança do pernambucano Aloísio Magalhães. Essas experiências tinham como pressuposto a ideia de que “a comunidade é a melhor guardiã de seu patrimônio”, o que implicava trabalhar em contato com as populações locais, prática desenvolvida com mais afinco a partir dos anos 80.
Essas ações e a reflexão sobre a importância dos bens culturais imateriais como referências fundamentais para vários grupos formadores da sociedade brasileira contribuíram para sensibilizar o Congresso Nacional a incluir o tema, de maneira contundente e afirmativa, no artigo 216 na Constituição Federal, promulgada em 1988. Contudo, apenas em novembro de 1997, as orientações contidas na Constituição resultaram em uma ação mais efetiva consolidada na Carta de Fortaleza. Nela recomendavam-se ao Estado brasileiro o aprofundamento do debate sobre o conceito de patrimônio imaterial, formas e estratégias de preservação, e o desenvolvimento de estudos para a regulamentação do instrumento legal do Registro , instituto jurídico de reconhecimento de bens culturais dessa natureza.
E assim, nasceu o Decreto 3.551/00, que regulamentou o art. 216, § 1º, da Constituição Federal, disciplinando o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem o Patrimônio Cultural Brasileiro e criando o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial.