Por Maurício Rands
O deputado Daniel Silveira vinha numa escalada de ódio que começara com a destruição da placa da rua que homenageava Marielle Franco, assassinada por milicianos no RJ. Quando era policial militar, foi punido quase 100 vezes. Famoso, elegeu-se deputado na onda extremista que elegeu Bolsonaro. Seguiu com ameaças físicas a autoridades, entre as quais os ministros do STF. E com a pregação de seu fechamento. No dia 20 de abril foi condenado por 10×1 pelo Pleno do STF por ataques às instituições. No dia seguinte, seu amigo presidente concedeu-lhe um decreto de indulto individual (graça).
Muitos consideram constitucional esse decreto. Argumentam que o art. 84, XII, da CF/88, atribuiu a competência exclusiva ao presidente sem limitações. Por isso, qualquer tentativa de limitar essa prerrogativa presidencial afrontaria a CF/88. Já os que consideram inconstitucional o decreto enxergam desvio de finalidade e tentativa de fazer a revisão de uma decisão do STF. Essa tentativa de funcionar como instância revisora do STF não está atribuída pela CF/88 ao presidente. Afinal, o Poder Moderador só existiu na Constituição do Império. De fato, no preâmbulo do decreto, em um dos seus “considerandum”, o presidente assim o fundamentou: “Considerando que a liberdade de expressão é pilar essencial da sociedade em todas as suas manifestações”. Vale dizer, indutou o deputado miliciano sob o argumento de que a sua condenação violou a liberdade de expressão. Ocorre que esse tema liga-se ao mérito da Ação Penal nº 1.044, na qual o STF decidiu que os atos do deputado não estavam protegidos pela direito à liberdade de expressão. Assim, o decreto, na verdade, significou a tentativa de revisão de uma decisão que julgou um membro do Congresso Nacional, o que cabe exclusivamente ao STF. O decreto afrontou, por isso, o art. 102 da CF/88. E, por tabela, o artigo 2º, que estabelece a independência e harmonia entre os poderes. Foi praticado, portanto, em desvio de finalidade.
À parte esse debate, o decreto não resiste a uma análise político-institucional. Foi editado antes mesmo que o acórdão fosse publicado e transitado em julgado. Soou como provocação ao STF. Como tentativa de desmoralizá-lo. Aproveitou-se da própria debilidade da atual composição do STF. Aproveitou-se também do fato de que a Ação Penal nº 1.044 resultou de um inquérito – o das Fake News – que já nasceu com vícios de inconstitucionalidade. Porque foi aberto sem a provocação do titular da ação penal, a Procuradoria Geral da República. E porque teve um relator nomeado sem sorteio, em violação frontal ao artigo 66 do Regimento Interno do STF. Mas isso não justifica a tentativa de revisar uma decisão sem que a CF lhe atribua esse poder.
Um tribunal tão frágil técnica e institucionalmente pode sair desmoralizado do episódio. Uma hipótese é a que o STF vai tentar ao menos conferir alguma interpretação intermediária quando se pronunciar sobre a ação proposta pela Rede visando invalidar o decreto. Fala-se que, ao menos, manteria uma interpretação de que o perdão do indulto afastaria apenas a pena de prisão. Nesse ponto, deve-se entender a distinção feita na teoria do crime. Para que se caracterize um crime, fazem-se necessários três elementos; i) tipicidade; ii) antijuridicidade; e, iii) culpabilidade. Presentes os três elementos, deve-se examinar a punibilidade, que consiste numa consequência do crime. A punibilidade é a possibilidade jurídica de o estado impor a sanção ao responsável pela infração penal. Existem causas de extinção da punibilidade: morte do agente, anistia, graça ou indulto e outras previstas no art. 107 do Código Penal. O decreto de graça é uma dessas causas. Assim, o deputado Daniel Silveira teve extinta a punibilidade. Isso não quer dizer que a graça afastou a configuração dos três elementos do crime. Sua conduta, assim disse o STF, é típica, antijurídica e culpável. O crime não deixou de ser reconhecido pelo STF. Por isso, ele pode, sim, ser considerado inelegível. Deve-se, pois, cotejar o crime que lhe foi imputado com as hipóteses previstas na Lei das Inelegibilidades (LC nº 64/1990), com as alterações feitas pela Lei Complementar nº 135, a Lei da Ficha Limpa. Ademais, em fundamento à hipótese de manutenção da pena de cassação e inelegibilidade que foi aplicada pelo STF no julgamento da Ação Penal 1.044, o STF pode adotar entendimento similar ao da Súmula 631 do STJ: “O indulto extingue os efeitos primários da condenação (pretensão executória), mas não atinge os efeitos secundários, penais ou extrapenais”. O efeito primário, a extinção da punibilidade de parte da pena, a prisão, estaria nos limites da prerrogativa presidencial de conceder indulto. Mas os efeitos secundários, entre os quais a perda do mandato (desde que ratificada pela Câmara dos Deputados) e a inelegibilidade, não poderiam ser alcançados pelo decreto de indulto.
A provocação desse decreto de indulto excitou as hostes da extrema-direita. Já estão na fila da generosidade de Bolsonaro alguns notórios milicianos e corruptos como Roberto Jefferson. Outros estão na fase de investigação. Casos do caminhoneiro Zé Trovão, do blogueiro foragido Allan dos Santos e do jornalista Oswaldo Eustáquio. Ao que parece, esse decreto de indulto individual já estava pronto para proteger os filhos do presidente, caso seus processos não tivessem sido retardados. O irônico é que Lula e Dilma são acusados pelo bolsonarismo de aparelhamento, corrupção e outras práticas não republicanas. Lula foi preso por um juiz que depois o STF declarou suspeito e incompetente. Mas o então presidente Michel Temer não ousou um decreto como o que agora o atual presidente edita para proteger um deputado miliciano e condenado por 10 ministros da Suprema Corte.
Maurício Rands, advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford