O acesso aos remédios caros para doenças raras

Por Maurício Rands

O menino capixaba Cauã Barbarioli Guimarães, de 3 anos, conseguiu na justiça, em 03/22, o direito de receber o medicamento Zolgensma para tratar a Atrofia Muscular Espinhal (AME), uma doença degenerativa que afeta os neurônios dos movimentos.

O bebê de 10 meses Gael Sousa, de Águas Claras-DF, acaba de receber, em 9/9/23, uma dose do Zolgensma por determinação judicial.

No Ceará, uma menina de 2 anos, também padecendo da AME, teve acesso ao Zolgensma. Em 05/09/23, o ministro do STF Cristiano Zanin determinou que a União lhe forneça o remédio que é considerado o mais caro do mundo, com preços que variam entre R$ 7 e 11 milhões a dose única. A medida foi adotada numa reclamação constitucional levada ao STF depois que uma decisão do STJ negara o fornecimento do medicamento sob o argumento de que o SUS fornece tratamento capaz de retardar a progressão da doença com outro medicamento. O fármaco foi incorporado à lista de remédios do SUS em dezembro de 2022. Mesmo com a incorporação, a família da criança cearense precisou acionar a justiça.

As decisões judiciais garantindo o acesso a medicamentos raros como o Zolgensma inscrevem-se em um ciclo que vai do poder judiciário às compras feitas pelo ministério da saúde. Alguns analistas sugerem que isso contribui para a transferência de valor do Brasil para os países sedes das farmacêuticas, já que o Brasil tem pouca produção de medicamentos sofisticados tecnologicamente e, por isso, acaba pagando pelas patentes e pela remessa de lucros (Sampaio, Laura Melo. Rio de Janeiro, 2023. A Judicialização do Acesso aos Medicamento). À parte essa questão das transferências externas, o problema permanece sobre os custos da judicialização. Quando o Ministério da Saúde cumpre a ordem judicial de fornecimento do medicamento milionário, é óbvio que o faz sob constrangimentos orçamentários que, em última instância, envolvem hierarquização de despesas. Ou alguém imagina que o orçamento para a saúde pública é ilimitado? Quando visto individualmente, o drama das crianças com AME nos conduz a apoiar decisões que obriguem o SUS a arcar com esses medicamentos. Mas nem sempre nos damos conta de que as opções do gestor são dramáticas. Afinal, muitas outras crianças que são pacientes de doenças até menos graves poderão sofrer se forem privadas equipamentos e de outros remédios, inclusive de vacinas. Não se trata de escolha fácil.

Por isso, várias soluções têm sido examinadas. Para além da judicialização, pode-se combinar uma série de políticas públicas para enfrentar o problema. Como por exemplo, (i) incentivos fiscais pelos governos para que os laboratórios desenvolvam medicamentos raros a custos reduzidos; (ii) financiamento público para pesquisas; iii) colaboração entre empresas farmacêuticas e universidades para a inovação em medicamentos; iv) sistema de preços com base no valor terapêutico dos medicamentos; v) regras de transparência nos custos de pesquisas e desenvolvimento; vi) articulações de organizações como a Iniciativa de Medicamentos para Doenças Negligenciadas; e, vii) quebra de patentes

A questão dos altos custos dos medicamentos raros envolve a busca de um equilíbrio delicado entre dois valores. O acesso amplo a tratamentos eficazes há que ser balanceado com a necessidade de incentivar a inovação na indústria farmacêutica. Se ela não tiver retorno dos investimentos, novos remédios poderão deixar de ser inventados. Mas os retornos que elas precisam ter devem ser vistos em seu conjunto. Não apenas em relação a um medicamento específico. Todos sabemos que os grandes laboratórios têm lucros gigantescos. Por isso, justifica-se que, em alguns casos como o do medicamento AME, os governos possam chegar até à medida extrema da quebra de patentes. Sem prejuízo da tentativa de negociação com as farmacêuticas para que elas voluntariamente reduzam os preços. Para isso, os países podem formar coalizações para aumentar seu poder de barganha, inclusive com o apoio da OPAS e da OMS. Mormente porque os casos de pacientes que os necessitam são relativamente poucos. Como já ocorreu em casos como o do AZT para AIDS, o tamoxifeno para câncer de mama, e os dos tratamentos para Hepatite C.

Maurício Rands, advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford

 

Natural do Rio de Janeiro, é jornalista formado pela Favip. Desde 1990 é repórter do Jornal VANGUARDA, onde atua na editoria de política. Já foi correspondente do Jornal do Commercio, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo e Portal Terra.