Por Maurício Rands
“A gente não é obrigada a consumir o que eles nos impõem em nome da liberdade de mercado. O mercado também nos joga muita porcaria; é assim com os alimentos processados, com as fake news, com o tratamento ao trabalhador; a reação que a gente tem é não comprar; mercado livre também inclui a nossa vontade, os nossos valores; está tratando mal os trabalhadores? tá jogando plástico na natureza? então bora boicotar se não respeitarem os nossos valores; o mercado tem a contrapartida dos consumidores; o boicote é a nossa suprema liberdade”. Esse foi o desabafo de Patrícia, como auditora fiscal e cidadã, indignada quando viu o vídeo de uma americana denunciando que Jeff Bezos gosta que seus trabalhadores acordem aterrorizados para serem produtivos. A reação já se inicia. Tem gente que já começa a buscar alternativas de e-commerce à Amazon de Bezos. Lembrei que Elon Musk tornou-se persona non grata na Suécia quando introduziu um regime autoritário em suas fábricas de lá, confrontando o modelo de coparticipação que data do “Compromisso de Saltsjöbaden de 1938”, um marco das relações trabalhistas e do modelo de bem-estar social sueco.Na Europa, depois que Musk declarou apoio a candidatos da ultradireita na Alemanha, Espanha e Inglaterra, as vendas de carros elétricos da Tesla caíram 45% em janeiro na Europa; e 76% em fevereiro na Alemanha. No mesmo mês, as ações da Tesla desvalorizaram-se em 28% depois que ele se envolveu com Trump.
Joseph Nye, da Universidade Harvard, celebrizou-se por ter criado o conceito de “soft power”. Ele mostrou como o poder pode ser desenvolvido pela atratividade e admiração; não apenas pela força econômica ou bélica. A liderança dos EUA a partir do pós-guerra foi seu exemplo eloquente. Os valores da liberdade, do livre-mercado, do multilateralismo e da democracia, mesmo com muitas inconsistência internas e externas, conquistaram a admiração do mundo. A nova ordem dos organismos multilateriais e das instituições de Bretton Woods tiveram nos EUA o principal líder. Essa liderança foi alavancada pelo “soft power” de suas instituições, sociedade civil, cultura, valores, cinema, música, universidades e imprensa plural. Que produziram conquistas admiradas como os direitos civis denegros, mulheres e homossexuais. E movimentos como os pela paz no Vietnã, pelo meio-ambiente ou o “Black Lives Matter”. Em ensaio publicado no Financial Times de 8/3/25, Joseph Nyeacaba de advertir que tudo isso os EUA estão pondo em risco com as práticas imperiais, nacionalistas e protecionistas de Donald Trump. Para Joseph Nye, o modelo Trump de imposição de força e poder signfica uma grande ameaça de declínio para os EUA. Obcecado por conquistas comerciais ou tarifárias, e até territoriais, Trump não percebe que os EUA foram os maiores beneficiários do modelo ocidental plural que emergiu do pós-guerra sob sua liderança. Seu “soft power” trouxe-lhe grandes benefícios econômicos como a mundialização de sua moeda, a grande expansão de suas empresas, tecnologias e investimentos financeiros. Tanto que o atual deficit comercial americano, um fato, nunca é acompanhado da discussão de seu superavit financeiro. Como mostrou o economista Alexandre Rands neste Diário de Pernambuco (ed. 8/2/25), é preciso olhar também para o “enorme fluxo de capital de retorno aos EUA, seja como investimento direto, em investimentos em ativos financeiros, pagamentos de dívidas do resto do mundo com agentes nos EUA ou redução de estoques de dólares no resto do mundo”. Trump enxerga apenas a parte vazia do copo, “as práticas comerciais injustas”. Ademais, Trump não percebe que o “soft power” americano está se deteriorando em alta velocidade. Como conclui Nye,
“ele é tão obsecado com o problema do caroneiro que ele esquece que tem sido do interesse americano conduzir o ônibus”. (…) O verdadeiro realismo não negligencia os valores liberais ou o “soft power”. Mas narcisistas extremos como Trump não são autênticos realistas, e o “soft power” americano passará por tempos difícieis nos próximos quatro anos” Idênticas advertências também acabam de ser feitas por DaronAcemoglu, o último Prêmio Nobel de Economia (FT, 8/2/25, “A real ameaça à prosperidade americana”), para quem “Trump rapidamente deixou de ser sintoma para se tornar causa, repetidamente rompendo as normas democráticas”.
O mundo assiste a uma concentração de poderes sem precedentes nas mãos de Donald Trump e seus amigos techbilionários. Felizmente surgem resistências. Como as do Judiciário que já derrotou algumas “executive orders” mais absurdas. Mesmo na Suprema Corte hegemonizada por nomeados seus. Como foi o caso da derrubada, por 5 votos a 4, da que cancelou US $2 bi de ajuda humanitária da USAID. A repulsa de consumidores como Patrícia e os que desistiram da Amazon ou da Tesla são exemplos de como o “soft power” americano já começa a declinar.
Maurício Rands, advogado formado pela FDR da UFPE, professor de Direito Constitucional da Unicap, PhD pela Universidade Oxford