Por Maurício Rands
No dia 02 de maio p.p, a Câmara esteve próxima de votar o substitutivo do PL 2630/2020, que visa a regular as plataformas digitais. Foi retirado de pauta depois de intensa pressão das Big Techs (Google, Meta, Twitter, Telegram e outras). Nem se diga que o assunto foi pouco discutido. Os debates adensaram-se pelo menos desde 2018, data da Lei do Marco Civil da Internet (Lei nº 13.765/2018). O substitutivo foi aperfeiçoado desde que foi aprovado no Senado. Na Câmara, foram realizadas 15 audiências públicas com especialistas de empresas e entidades envolvidas com o tema. Nelas discutiram-se a importância de uma lei para o combate à desinformação e os procedimentos para que os provedores de plataformas digitais exerçam o dever de cuidado com respeito aos princípios da liberdade de expressão, transparência e responsabilidade. Inclusive com mecanismos judiciais e extrajudiciais para a moderação, prevenção e remoção de conteúdos tóxicos, num modelo definido como de autorregulação regulada.
No STF, chegaram a ser pautados, em maio, os Recursos Extraordinários 1.037.396 e 1.057.258 – Temas 533 e 987, Repercussão Geral) que tratam de eventual responsabilidade civil dos provedores, desde que notificados, por conteúdospublicados em suas plataformas quando em violação de direitos de personalidade, discurso de ódio ou conteúdo desinformativo.Às vésperas da votação do PL, empresas como Google e Telegram foram acusadas de manipulação em seus sistemas de buscas por terem direcionado os internautas para conteúdos favoráveis às suas posições contra o PL. Essas iniciativas dos provedores foram vistas por muitos como mais uma razão a justificar a regulação, dado o evidente abuso do seu imenso poder de facilitar ou disseminar a desinformação.
O substitutivo do PL 2630/20, consolidando 66 PLs e rejeitando outros 29, explicitou os seguintes objetivos: o fortalecimento do processo democrático, a defesa da liberdade de expressão, o impedimento da censura no ambiente on line, a busca por maior transparência nas práticas de moderação de conteúdos postados por terceiros nas redes sociais, e a adoção de mecanismos e ferramentas de informação sobre conteúdos impulsionados e publicitários disponibilizados para o usuário.
Especialistas têm realçado a importância dos princípios que devem integrar um marco regulatório para o uso das ferramentas digitais. E o PL 2630/2020 é explícito ao elencá-los, entre outros: defesa do Estado Democrático de Direito; fortalecimento do processo democrático; livre exercício da expressão e dos cultos religiosos, com exposição plena dos seus dogmas e livros sagrados; liberdade de expressão, liberdade de imprensa, acesso à informação; proteção de dados pessoais e da privacidade;garantia da confiabilidade e da integridade dos sistemas informacionais; transparência e responsabilidade dos provedores na aplicação da lei e dos seus termos de uso; vedação à discriminação ilícita ou abusiva pelos provedores aos usuários.
A pretendida regulação dos provedores de plataformas digitais alcança as redes sociais, as ferramentas de busca e os serviços de mensageria cujo número médio de usuários mensais no país seja superior a 10.000.000 (dez milhões). Introduz regras de autorregulação voltadas à transparência e à responsabilidade no uso da internet. E institui o crime em espécie de promover ou financiar, mediante uso de conta automatizada e outros meios,divulgação em massa de mensagens que contenha fato que sabe inverídico, que seja capaz de comprometer a higidez do processo eleitoral ou que possa causar dano à integridade física e seja passível de sanção criminal. Com pena de reclusão, de 1(um) a 3 (três) anos e multa.
Trata-se de tema estratégico para o futuro de qualquer país. A regulação já é realidade na Europa (Digital Services Act, de 19/10/2022). Onde também já está sendo debatido o Europe’sArtificial Intelligence Act, segundo o Financial Times (edição de 30/05/23). De como o Direito vai regular a IA e as plataformas vai depender a própria liberdade de expressão, informação e criação. Mesmo que, para se opor à necessária regulação dos provedores de plataformas digitais, os de sempre – liberais de conveniência – manipulem o fantasma de que a regulação seria a própria ameaça. Esses opositores da regulação não percebem que os próprios algoritmos censuram e discriminam? E que suprimem opiniões e informações que não se enquadram na arquitetura de um lucrativo modelo de negócios? Não veem que essa arquitetura é desenhada para capturar a audiência digital mesmo que seja com o abjeto, ultrajante, criminoso, odioso ou fake? Não percebem que as plataformas digitais hoje se equiparam aos veículos de comunicação que são sujeitos a severa regulação? Não intuem que uma ferramenta de IA programada para uma meta benéfica pode desenvolver métodos destrutivos para atingi-la? Ou será que as Big Techs não querem a regulação simplesmente porque ela vai alterar e reduzir seus modelos de monetização que dependem do fomento à intolerância, ao ódio e à desinformação? Esperemos que o PL 2630/20 volte à pauta. Que não seja cancelado, como querem osgrandes provedores.
Maurício Rands, advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxfordk