Por Maurício Rands
Os textos legais nem sempre são claros o suficiente. Para sua interpretação, o direito constitucional contemporâneo desenvolveu alguns princípios: o da unidade da Constituição, o da presunção de constitucionalidade, o da supremacia da Constituição e o da interpretação conforme a Constituição. Este último princípio induz o intérprete, no exame da constitucionalidade de uma lei, a escolher o sentido que melhor se harmonize com o sistema constitucional.
É este o instrumento que está sendo usado no julgamento do Recurso Extraordinário 635659 sobre a constitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006). Esse preceito já havia proibido a prisão por porte de drogas para consumo próprio, embora sem definir os parâmetros do que deve ser tido como consumo. Por isso, o voto do relator Gilmar Mendes, proferido em 2015, havia proposto a descriminalização de todas as drogas para uso próprio. Já haviam votado os ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso também pela descriminalização, embora com nuances.
Em seu voto dado na sessão de retomada do julgamento, no último dia 02/8, o ministro Alexandre Moraes propôs uma nova interpretação, conforme a Constituição, para o referido art. 28. Originalmente, o preceito teve a seguinte a redação: “Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”.
Como esse texto não trouxe parâmetros para diferenciar a posse para consumo da posse para traficar, as autoridades policiais e judiciárias têm seguido critérios distintos. É comum um usuário da periferia ser tratado com mais rigor do que o de um bairro rico. Às vezes a diferenciação decorre da cor da pele. Essas ações policiais e sentenças judiciais ferem os princípios da igualdade, da intimidade, da privacidade e da dignidade da pessoa humana.
Para que o art. 28 seja aplicado em respeito a esses princípios constitucionais, o ministro Alexandre Moraes, no referido voto do dia 02/8, propôs critérios objetivos para definir a posse para consumo. Porque esse julgamento foi definido como de repercussão geral, ele propôs uma redação para o Tema 506: “1. Não tipifica o crime previsto no artigo 28 da Lei nº 11.343/2006 a conduta de adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, para consumo pessoal, a substância entorpecente `maconha´, mesmo sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar; 2. Nos termos do § 2º do artigo 28 da Lei nº 11.343/2006, será presumido usuário aquele que adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trazer [sic] consigo, uma faixa fixada entre 25,0 a 60 gramas de maconha ou seis plantas fêmeas, dependendo da escolha mais próxima do tratamento atual dado aos homens brancos, maiores de 30 anos e com nível superior”. A sessão foi suspensa a pedido do relator Gilmar Mendes, para que ele proponha uma redação que harmonize os votos já proferidos na mesma direção.
Esses parâmetros poderão ser superados caso o Congresso Nacional aprove lei que os defina de outro modo. Desta feita, diferentemente de outros julgamentos, o STF não está extrapolando os seus poderes. É que a interpretação conforme a Constituição visa justamente evitar a declaração de inconstitucionalidade de texto produzido pelo poder legislativo. Ao invés de afastar o art. 28, o STF vai preservá-lo. Sim, porque vai harmonizá-lo com os princípios constitucionais que têm sido desrespeitados pela atuação da polícia e do judiciário quando seguem diferentes critérios para pessoas presas com a mesma quantidade de droga e em circunstâncias semelhantes.
Essa nova intepretação do STF harmoniza-se com as tendências de sociedades maduras como a norte-americana, a canadense, a uruguaia e as de muitos países europeus, inclusive o Portugal das nossas origens. Harmoniza-se também com as visões de mundo que, rejeitando os fundamentalismos obscurantistas, favorecem a liberdade e o direito à privacidade das pessoas. Aliás, nesses temas, o STF tem se pautado na direção que me parece correta. Como tem ocorrido em julgamentos de questões sobre a união homoafetiva, a violência de gênero e o combate ao racismo.
*Advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford