OPINIÃO: Menos hipocrisia e mais beijinho no ombro (Parte II)

Por DANIEL FINIZOLA

Ao escrever o texto da semana passada, sabia que iria provocar debates e reflexões. Normal. Estou exercitando um pouco da maiêutica, incitando o diálogo sobre o tema, que me parece bem pertinente ao atual contexto cultural, social e econômico que vivemos, algo parecido com o que o professor do Distrito Federal fez com sua polêmica prova. Os comentários no blog e nas redes sociais foram ótimos! Alguns extremamente interessantes, enquanto outros preocupados em distribuir rótulos – até ganhei alguns.

Vamos ao que interessa.

Precisamos analisar que vivemos em uma sociedade de classe e, como tal, fomos acostumados a desenvolver uma certa visão hierarquizada das coisas. Com a cultura não seria diferente. Criamos a ideia de que uma cultura é “boa” ou “ruim”; muitas vezes, a partir de um julgamento moral, social e estético do artista que a produz. É preciso questionar. Quais as variáveis e os parâmetros que fazem uma cultura ser “boa” ou “ruim”? Há um porquê dessas nomenclaturas. Vejamos o conceito de “cultura popular”. Ora, se existe o conceito “popular” é porque existe uma antítese, a erudita, e a quem interessa essa divisão? Quem a criou e por que criou? Ela faz parte da lógica de uma sociedade economicamente desigual.

Ao invés de rotular e segregar a produção cultural das classes menos abastardas, devíamos procurar entender o porquê dessa expressão cultura de acordo com o contexto em que está inserida. É fato comprovado estatisticamente que o crescimento da renda das classes C e D aumentou o acesso aos bens de consumo, os quais possibilitam a propagação da informação. Em meio a tudo isso, surge um novo nicho de mercado que interessa a muita gente. Roupas, produtos de beleza, música são apenas alguns exemplos dos bens que vão se inserindo nesse novo contexto mercadológico. Alguém deve lembrar daquele programa “Esquenta”, da Globo. Ele é um dos símbolos midiáticos dessa nova dinâmica do mercado.

É nesse cenário que o polêmico funk ostentação ganha destaque na mídia alternativa e tradicional. Ele é fruto de um contexto social novo, no qual vários estudiosos da sociedade vêm se debruçando, procurando entender fenômenos como o “rolezinho”. A visibilidade que a cultura da periferia ganhou na mídia e nos espaços de mercado nos últimos tempos incomoda muita gente, externa o preconceito velado e expõe nossas feridas sociais e históricas. Para muita gente, ficou difícil e insustentável dividir espaços virtuais, midiáticos e reais, antes frequentados e utilizados apenas por alguns grupos sociais.

O debate precisa e deve ir além da arte que se produz na periferia. Essas manifestações culturais estão diretamente ligadas ao desejo de afirmação social e econômica das classes mais baixas, alimentado ainda mais o mito capitalista da inclusão pelo consumo e exposição. Nada muito diferente das classes mais abastadas, que também exercem sua afirmação social, seja pelo poder econômico, seja pela educação formal a que teve acesso – a mesma educação que hierarquiza os saberes e acha um absurdo uma cantora de funk ser considerada pensadora.

Valeska Popozuda, como tantos outros, virou fenômeno midiático porque há uma indústria do entretenimento por trás, fazendo a coisa acontecer. Isso significa muito dinheiro e estratégia de marketing. É um negócio! Da mesma forma que ocorre com o Kiss, Iron Maiden, Roberto Carlos e Lenine. Guardadas suas devidas proporções, claro! Há algum tempo, bastava o artista fazer um disco mais “conceitual” e vender menos para o seu contrato na gravadora ficar ameaçado.

A lógica do mercado fonográfico hoje é mais complexa do que a que tínhamos nos anos 80. O mundo virtual abalou o poder das gravadoras e deu uma nova dinâmica ao mercado fonográfico. Perceba que há uma grande volatilidade no mercado da música nos últimos tempos. Ontem foi “Gangnam Style, hoje é “Beijinho no Ombro” e amanhã virá outra. E assim a indústria do entretenimento segue fazendo produtos culturais cada vez mais passageiros, mas repito: é preciso entender os porquês desses fenômenos que não são de hoje e não são algo exclusivo da música. O debate precisa caminhar sem reducionismo ou colocações preconceituosas.

Eu não curto a estética artística do funk, nem do forró estilizado, por exemplo. Não coloco no meu carro para escutar, mas o meu gosto musical não me dá autoridade nem poder para dizer qual arte é “boa”. Eu simplesmente não gosto enquanto estética artística, como também não gosto do realismo na pintura. Isso não quer dizer que ela é “ruim”. Respeitar o funk como expressão cultural da sociedade brasileira não obriga você a frequentar um baile funk, mas também não te dá o direito de dizer que é algo que não “presta”. Tenho críticas às músicas de discurso sexista tão presente no funk, ao mesmo tempo, há várias músicas ligadas ao funk que quebram paradigmas ligados ao corpo feminino, instituídos durante séculos de repressão sexual, algo que ainda é tabu na sociedade brasileira.

É bom deixar claro que esse texto não tem a pretensão de explicar todas as questões que circundam esse tema. Várias lacunas vão ficar e merecem ser discutidas. Cabe a cada pessoa propagar o debate tendo em vista que a grandeza e riqueza da cultura humana está na sua diversidade e relações. Sigamos com mais respeito e menos preconceito.

Até semana que vem.

daniel finizola

 

@DanielFinizola, formado em ciências sociais pela Fafica, é músico, compositor e educador. Escreve todas as quartas-feiras para o blog. Site: www.danielfinizola.com.br

Natural do Rio de Janeiro, é jornalista formado pela Favip. Desde 1990 é repórter do Jornal VANGUARDA, onde atua na editoria de política. Já foi correspondente do Jornal do Commercio, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo e Portal Terra.

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