OPINIÃO: Nos tempos de criança

Por DANIEL FINIZOLA

Os raios de sol, aos poucos, iam atravessando as frestas das telhas. A luz começava a riscar o piso e lá fora o som das pessoas acordava o dia. O homem do leite passava na CG vermelha trazendo a delícia do campo que sempre era multiplicada ao chegar na cidade. Bastava um pouquinho de água. A porta da mercearia, ao rolar para cima, despertava os vizinhos que não tardavam em comprar o pão. Aos poucos, as ruas eram tomadas por meninos e meninas que exercitavam sua ludicidade nos terrenos esquecidos, cheios de mato e terra.

As brincadeiras tinham épocas. Ora era finca, jogo perigoso onde se roubava a faca lá na cozinha da avó. Desenhava-se uma figura geométrica no chão de terra e de cada ponta da figura saía a linha do jogador. Com força e destreza, jogava-se a faca para cravá-la no chão. A cada ponto cravado, riscava-se uma semirreta ligando os pontos. Objeto: fechar o outro jogador até que ele não tivesse mais espaço para sair do emaranhado de retas que iam se constituindo. Essa brincadeira acertou e cortou a canela de muita gente.

Em outro momento, era o pião. Riscávamos o “oi de boi” (um círculo) no chão, colocávamos um pião na roda e, com outro pião, tentávamos acertar e retirá-lo do “oi de boi”. Quem conseguisse ficava com o pião. Mas a grande emoção estava em ver um pião na roda se partir ao meio com a pancada. O autor do feito ganhava respeito do grupo.

Quando o assunto era pipa, a coisa complicava. Era preciso tala pra fazer a pipa. Todos se penduravam nos coqueiros atrás das folhas para retirar a tala e montar a estrutura da pipa. Depois vinha a busca pela seda. Muitas mercearias de bairro já vendiam seda para pipa – em outros casos, se resolvia com a seda que vinha enrolada no sapato. A rabeta da pipa se resolvia com as bolsas plásticas de supermercado. Mas aí vem a parte perigosa e condenável: o cerol! Todos corriam para o lixo a fim de procurar uma lâmpada queimada pra quebrar e misturar com cola. Tudo pra derrubar mais fácil na “torança” a pipa do amigo. Boa mesmo era a carreira que todo mundo dava para pegar a pipa que perdia a disputa… Era um troféu que, normalmente, o autor do feito não ficava. Ainda tinha a crença de não poder soltar pipa à noite. Segundo minha avó, pipa que visitasse o céu durante a noite traria doença. Não entrava em casa e precisava ser destruída.

Mas tinha uma brincadeira de vocabulário peculiar, onde qualquer ação precisa de um grito. Expressões como “bate seu”, “carioquinha”, “tudo sujo” e “tudo limpo” eram comuns para um jogador de bola de gude. O grande desafio era retirar o maior número de bolas do “tria” (nome que dávamos ao triângulo onde “casávamos” as bolas). O jogador temido sempre entrava no jogo com uma ferrança: bola de metal retirada do rolimã.

Ainda tinham brincadeiras como “tocou, gelou”, “esconde-esconde”, “academia”, “tô no poço”, “queimada”, “barra-bandeira”, “elefante colorido” e tanta outras.

As novas estruturas urbanas e a popularização da tecnologia deixaram a diversão infantil cada vez mais solitária, carente de sorriso, suor e energia física. Mas… como serão esses adultos?

Até semana que vem.

daniel finizola

 

@DanielFinizola, formado em ciências sociais pela Fafica, é músico, compositor e educador. Escreve todas as quartas-feiras para o blog. Site: www.danielfinizola.com.br

Natural do Rio de Janeiro, é jornalista formado pela Favip. Desde 1990 é repórter do Jornal VANGUARDA, onde atua na editoria de política. Já foi correspondente do Jornal do Commercio, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo e Portal Terra.

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