Precisamos discutir a hipocondria moral

Por Maurício Rands

Para quem valoriza as conquistas da filosofia e da ciência, os tempos são de preocupação. A disputa das narrativas é acirrada pelo modo como as grandes plataformas digitais organizam os algoritmos que determinam o que vai aparecer em nossas telas. A ponto de muita gente inteligente se deixar convencer por negacionismos e realidades paralelas. As reações contra as vacinas e a ciência durante a pandemia evitaram que milhares de vidas fossem poupadas. A adesão a ideologias extremistas, como a da ultradireita populista, faz avançar o ódio, a discriminação e a exclusão. Conquistas emancipatórias vão sendo minadas por “opinionismos” que não resistem a qualquer análise lógica, aos dados empíricos ou ao conhecimento acumulado. Se antes o papel aceitava tudo, agora é mais grave. A telinha aceita tudo e espalha tudo em maior escala. Mesmo o falso, abjeto e criminoso.

O prof. Jonathan Rauch, da Brookings Institution, em seu “The Constitution of Knowledge” (2021), faz um alerta contra as ameaças às conquistas da chamada comunidade do conhecimento. Para ele, essas ameaças provêm, em primeiro lugar, da ultradireita populista e autoritária, praticante fanática da difusão da desinformação. Mas também de setores de uma esquerda identitária afeitos à cultura do cancelamento. Ele mostra que ambas as formas de intolerância colocam em risco o que ele chama de “Constituição do Conhecimento”. Ambas impedem um debate mais plural e capaz de avançar o conhecimento pelo livre entrechoque de ideias, hipóteses e teorias.

Com preocupação análoga, outros pensadores têm focado o que chamam de hipocondria moral. O Globo do dia 19/8/23 fez um apanhado de estudos que apontam o crescimento do fenômeno em tempos de bolhas de internet. Não sem antes advertir que gente como Erich Fromm (1900-1980) já colocara o dedo na ferida. Em um ensaio publicado na Revista Serrote (IMS), de autoria de Carrillo e Luque, a hipocondria moral é descrita como uma “peculiar combinação de decência e narcisismo”. Assim como o hipocondríaco tradicional sonha em morar perto do hospital e da farmácia, o hipocondríaco moral quer viver perto do celular e das redes sociais. Os acometidos desta epidemia estão sempre postando opiniões indignadas para atestar sua “correção moral”; sua sintonia com causas meritórias. Em exibicionismo que chama mais atenção para o ativista digital do que para a causa em si. “A apropriação de causas nobres unicamente para cultivar sua boa reputação”, na expressão do mexicano Luque. Basta um clique para que o hipocondríaco moral se sinta moralmente superior. E pense que está fazendo alguma coisa para melhorar o mundo. A ação consequente no mundo real não lhe preocupa. Ou melhor, quase nunca é praticada.  

Precursores dos atuais hipocondríacos morais são alguns radicais de assembleia. Insuflam a ação coletiva, às vezes uma ação desproporcional à conjuntura e ao equilíbrio de forças. Mas, na sequência, omitem-se das necessárias ações práticas. Esse tipo de atitude já me irritava no movimento estudantil. E me indignava em movimentos de consequências mais sérias, como o sindical. De minha participação em ambos, trago a dupla memória: a dos radicais omissos na ação, mas também a boa lembrança de militantes sérios que assumiam as responsabilidades da ação coletiva. Mesmo que tivessem discordado da sua deflagração.

Os hipocondríacos morais das redes sociais estão sempre em busca da validação dos que integram as suas bolhas. Resvalam para o narcisismo em competição sobre quem melhor prega para os convertidos. Navegam em total descompromisso com qualquer ação prática para estancar o mal que tanto acusam. Não lhes ocorre que o exagerado vulgariza e afasta, pois o que é massificado diminui o interesse.

Lembro que certa vez a hipocondria salvou Aurélio, Bebeth, Patrícia e eu de um grande mico. Viajávamos da Inglaterra à Bélgica, em “lisereu” de estudantes, com os filhos. Tempo em que não existia celular, nem internet. Havíamos perdido o endereço do primo que nos hospedaria em Louvain-la-Neuve. Chegando ao bairro universitário, só nos restou caminhar e indagar. Mas eis que, de repente, na janela de uma das casas, avistamos uma estante cheia de remédios. “Pode tocar a campainha, que o primo é hipocondríaco”. Não deu outra. Diferentemente do episódio de Louvain, não creio que esta outra hipocondria vá nos salvar de nada. Salvo, talvez, possa ser o ego dos seus praticantes. Como talvez todos tenhamos alguma dose de hipocondria moral, resta o conforto de que também possamos ter um pouquinho do nosso ego acalentado.

Maurício Rands, advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford

 

Natural do Rio de Janeiro, é jornalista formado pela Favip. Desde 1990 é repórter do Jornal VANGUARDA, onde atua na editoria de política. Já foi correspondente do Jornal do Commercio, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo e Portal Terra.