Por Andrea Dip
A pequena casa de dois cômodos onde moram Vitória*, seu bebê e sua mãe, Laura, no Jardim Guarani, na periferia da zona norte de São Paulo, em nada se parece com as mansões luxuosas onde vivem em prisão domiciliar alguns réus delatores da operação Lava Jato – uma até com vista para o mar. Em contraste com as áreas verdes, piscinas e academias, como mostrou em abril deste ano uma reportagem do Fantástico sobre os presos domiciliares da Lava Jato, Vitória nos recebe para um café em uma pequena cozinha que também faz as vezes de sala. Ao fundo, o quarto com um beliche onde os três dormem e guardam seus pertences frequentemente é inundado pela água que transborda do banheiro, conta Vitória enquanto amamenta o filho. É algo a mais para resolver na lista da família, que tenta sem sucesso uma vaga para Lucas na creche do bairro e tem como renda apenas o dinheiro que dona Laura ganha trabalhando com limpeza em três empregos diferentes.
Na Venezuela, a mãe de Vitória era professora primária, mas sem fluência no português tudo aqui é mais difícil. Quando soube da prisão da filha grávida, dona Laura deixou a família e veio correndo ao auxílio dos dois. Não descansou até conseguir alugar essa casa e por a documentação da filha em ordem para, junto ao Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), que trabalha com mulheres estrangeiras presas, tentar o habeas corpus para a prisão domiciliar. Vitória foi presa com cocaína no aeroporto de Guarulhos e levada para a Penitenciária Feminina da Capital (PFC), onde descobriu a gravidez e permaneceu por pouco mais de um ano, até que seu filho completasse 6 meses. Apesar da vida difícil, ela se sente aliviada por ter deixado o presídio e se sente “privilegiada” entre as tantas mães que conheceu no cárcere que continuam sem previsão de mudança de rumo. “Quando saí, deixei tudo que tinha para as mães com os bebês de lá. Porque é muito difícil, tem gente que não tem família, não tem nada. Eu mesma lavava roupa para outras mulheres para conseguir maços de cigarro que trocava por sabonete e fraldas para o Lucas até minha mãe chegar”, lembra.
Na verdade, Vitória poderia ter saído mais cedo e evitado as três quedas que teve, já em trabalho de parto, no banheiro da penitenciária, ou o tempo que o filho passou na incubadora por causa de sofrimento fetal decorrente da demora para ser levada ao hospital. O artigo 318 do Código de Processo Penal determina que o juiz pode substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando, entre outras razões, o agente for “gestante”, “imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência” e, a partir de 2016, com o Marco Legal da Primeira Infância, a Lei 13.257, “mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos”. O Brasil é signatário da Convenção de Bangcoc que determina, entre outras condições para a mulher mãe encarcerada, que ela possa responder ao processo em liberdade. Mas essa não é nem de longe a regra, como aponta a pesquisa “Quando a casa é a prisão: uma análise de decisões de prisão domiciliar de grávidas e mães após a Lei 12.403/2011”, de Ana Gabriela Braga e Naila Ingrid Chaves Franklin. Elas analisaram sentenças em casos de pedidos de prisão domiciliar de 2011 a 2013, enfocando mulheres pobres, negras e jovens, com base nos dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). A conclusão do trabalho é que as prisões domiciliares são concedidas às mães por múltiplos fatores, mas que “a discriminação negativa incide sobre o gênero feminino, fazendo com que as figuras de ‘mãe’ e ‘criminosa’ sejam socialmente irreconciliáveis”.
“A prisão domiciliar é um gênero que comporta duas espécies. Uma está prevista no Código de Processo Penal como medida cautelar, quando a pessoa ainda não foi julgada. De outro lado, você tem a prisão domiciliar no âmbito da Lei de Execução Penal, prisão pena. Uma serve para garantir o regular curso do processo, a ordem pública e aquelas condições para a prisão preventiva. E a prisão domiciliar no âmbito da execução penal, quando a pessoa já foi condenada, é um modo de cumprimento da pena”, explica o advogado criminalista Lucas Sada. “Os requisitos são mais ou menos parecidos nos dois casos: para pessoas maiores de 80 anos, pessoas muito debilitadas por doença grave, pessoas imprescindíveis ao cuidado de menores de 6 anos ou com deficiência e gestantes, e uma regra nova que é para mulher com filhos com até 12 anos e para o homem caso seja o único responsável pelo cuidado desse filho. O que está na LEP [Lei de Execuções Penais] fala em condenados maiores de 70 anos com doença grave, com filho menor ou deficiente físico, mental ou gestantes”, acrescenta.
Ainda assim a prisão domiciliar, que tem sido aplicada frequentemente aos delatores da Lava Jato, encontra forte resistência do Judiciário quando os réus são “pessoas comuns”. Segundo Patrick Cacicedo, defensor público do Núcleo Especializado de Situação Carcerária, de 70% a 80% das mulheres em prisão preventiva hoje em São Paulo deveriam estar em casa: “É muito difícil conseguir. Os juízes arrumam subterfúgios interpretativos para manter a prisão, e a grande maioria das mulheres está presa por tráfico de drogas, um tráfico muito pequeno, sem violência e sem armas. Nos casos de cumprimento de pena, então, como os aplicados na Lava Jato, eu pessoalmente não me lembro de ver um caso em São Paulo”.
A Pública entrou em contato com o Ministério da Justiça, com o Depen, com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e com cada estado do país para obter – inclusive mediante a Lei de Acesso à Informação – o número atualizado de pessoas em prisão domiciliar como medida cautelar e como pena, mas novamente deparou com a falta de dados sobre o sistema prisional brasileiro. De todos os estados, apenas o Distrito Federal, Santa Catarina e o Rio Grande do Sul responderam, e os órgãos federais informaram que não há esse número consolidado. O dado mais atualizado do CNJ é de 2014, quando havia no país uma população carcerária de 711.463 pessoas, 147.937 mil em prisão domiciliar, pouco mais de 20%. Não há na pesquisa recorte de gênero ou dados sobre se essas pessoas estão aguardando o julgamento ou cumprindo pena. É importante lembrar que já na época, com esse número total, o Brasil ocupava o terceiro lugar no ranking mundial de países com a maior população carcerária e que o percentual de presos provisórios (ainda não julgados) nas prisões era de mais de 40% e o déficit de vagas, 206.307.