Pai, mãe, filhos. O retrato da família ganha novas configurações a cada dia. A paternidade hoje pode ser dupla, socioafetiva, por adoção ou opção exclusiva e conquistada por meio do Judiciário. Novos modelos de pais surgem e, com eles, desafios, questionamentos, dúvidas e certezas. Dentre as certezas, está o afeto que parece permear todas as histórias contadas pelos homens que conquistaram o direito de ser pai. Com algumas decisões inéditas relacionadas ao exercício da paternidade, o Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) referenda o direito de ser pai, filho, avô, embasado sobretudo nos vínculos afetivos.
Ao longo da história, uma das decisões inéditas do TJPE, no país, foi o reconhecimento à dupla paternidade do casal de empresários Mailton Albuquerque, 41 anos, e Wilson Albuquerque, 46 anos, em relação à filha Maria Teresa. Em 2012, o juiz da 1ª Vara de Família e Registro Civil da Capital, Clicério Bezerra, proferiu sentença favorável ao registro da filha dos dois, então com um mês de vida.
Maria Teresa foi gerada através de fertilização in vitro, com óvulo de uma doadora anônima, e a participação de uma prima de Maílton, que carregou a criança no ventre. Como Mailton foi o pai biológico na reprodução assistida, faltava reconhecer a paternidade de Wilson. Foi aí que o casal entrou com o pedido na Justiça, que deferiu a paternidade socioafetiva do segundo pai.
Dois anos após o nascimento de Maria Teresa, o casal repetiu o procedimento de reprodução assistida e teve o filho Teo. A nova experiência contou novamente com a ajuda da prima de Mailton, na gravidez. Nesse caso, o pai biológico foi Wilson, e Mailton conseguiu ser registrado como pai socioafetivo ao entrar com o pedido no cartório. Dessa vez, não foi preciso impetrar uma ação. Já havia sido criada jurisprudência favorável ao reconhecimento voluntário de paternidade socioafetiva perante os cartórios, por meio do Provimento TJPE 009/2013, de autoria do desembargador Jones Figueirêdo, e do Provimento 063/2017 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Por meio desses instrumentos jurídicos, referenda-se que a paternidade socioafetiva, que é a estabelecida pelos vínculos afetivos entre duas pessoas, no âmbito familiar, possa ser solicitada diretamente nos cartórios em que a criança foi registrada. A paternidade, em geral, é requerida por padrastos, mas pode também por um tio, padrinho, ou alguém que desempenhe efetivamente a função de pai. O interessado poderá reconhecer a paternidade por meio da apresentação de documento de identificação com foto e certidão de nascimento do filho. O oficial de registro civil procede a minuciosa verificação da identidade da pessoa interessada na paternidade socioafetiva. Quando o filho a ser reconhecido tem menos de 18 anos, é necessária também a assinatura no termo da mãe ou do outro pai. Caso o cartório ache necessária a avaliação do pedido em Vara de Família, encaminha a solicitação para o Judiciário.
Pai socioafetivo ou biológico, termos técnicos para Mailton e Wilson, casados há 21 anos, que significam pais efetivos e em tempo integral de Maria Teresa e Teo, hoje com seis e quatro anos, respectivamente. A experiência da paternidade ao longo dos anos, trouxe para Mailton a constatação de que sua família não difere de qualquer outra.
“Temos todas as dificuldades na educação de um filho, de compreender as necessidades das crianças. A gente sabe que trouxe eles para o mundo numa configuração diferente, mas temos uma base familiar e uma rede de amigos muito acolhedoras. Sinto que eles se sentem seguros nessa estrutura. Meu maior receio era chegar o dia em que eles fossem para a escola e ter que lidar com algum tipo de preconceito, mas tivemos uma ótima receptividade por parte dos amiguinhos e dos pais dos alunos. Acho que as pessoas têm todo o direito de não concordar com nossa formação familiar, mas considero o respeito fundamental numa sociedade. Vivemos num país democrático, onde as diferenças existem e precisam ser respeitadas. Esse é o ponto chave. Na minha opinião, as configurações familiares embora diferentes comungam dos mesmos valores, que têm o princípio do amor acima de tudo”, considera.
Quando se trata de novas configurações familiares, a 1ª Vara de Família e Registro Civil da Capital conta com mais uma decisão pioneira no país. Proferida em 2013 pelo juiz Clicério Bezerra, a decisão admitia acrescentar ao registro de nascimento de uma mulher adotada o nome de seu pai biológico, para fins de admissão de multiparentabilidade existente quando as relações de afetividade reúnem todos.
“Após conhecer o pai biológico, a mulher adotada ainda bebê criou um vínculo afetivo com o genitor e solicitou a inclusão do nome dele no registro de nascimento, com a anuência dos pais adotivos e do biológico, mantendo-se assim a paternidade adotiva e registral. Acho que a verdadeira paternidade se consolida por meio das relações de carinho, acolhimento, confiança, momento em que os filhos encontram nos pais a figura de referência em suas vidas. Essa identidade há de ser protegida pelo direito”, avalia o magistrado.
Na área da Infância e Juventude do Tribunal, os vínculos entre pais e filhos surgem por meio do processo de adoção. Nesse contexto, há aqueles que decidiram realizar o desejo da paternidade sem um cônjuge do lado, são os pais solteiros. É o caso do designer e professor universitário Charles Leite, de 38 anos, que concluiu o processo de adoção em março deste ano e hoje é pai de José Mateus, de 12 anos.
“A primeira vez que me surgiu a ideia da adoção, foi há uns dez anos, quando muitos dos meus amigos e colegas, homens e mulheres em idade reprodutiva, começaram a gerar filhos. Naquela época, eu percebi claramente que alguns deles tinham ou faziam projeções sobre a filiação biológica que eu nunca tive. O desejo de ser pai, veio crescendo e evoluindo comigo, desde que me tornei adulto e mais consciente da minha própria história. Após a separação dos meus pais, eu fiquei sob a guarda da minha mãe e deixei de conviver e ter contato regular com meu pai. Creio que essa consciência de ter vivenciado, de certa forma, um abandono, me tornou empático às histórias e vivências de crianças e adolescentes que vivem, institucionalizados, em casas de acolhimento. Eu tinha certeza de que seria pai para, de alguma maneira, ressignificar a minha própria história”, revela.
O processo de habilitação para adoção começou em julho do ano passado, por meio da inscrição no Cadastro Nacional de Adoção (CNA). Ao mesmo tempo, Charles se inscreveu no projeto Pernambuco que Acolhe, desenvolvido pela Comissão Estadual Judiciária de Adoção (Ceja TJPE), que tem como objetivo proporcionar a crianças e adolescentes que vivem em casas de acolhida, oriundos das diversas comarcas do estado, a construção de ligações externas e uma melhor integração na sociedade, por meio do apadrinhamento afetivo, material ou profissional. Através da equipe da comissão, Charles conheceu o Programa Anjo da Guarda, desenvolvido pela Vara da Infância e Juventude de Jaboatão dos Guararapes, que tem o mesmo propósito direcionado a crianças e adolescentes do município.
Através do Programa Anjo da Guarda, Charles conheceu todas as casas de acolhimento da Comarca de Jaboatão dos Guararapes. Em novembro de 2017, após não ter sido possível localizar pretendentes no Cadastro Nacional de Adoção, Charles foi convidado a ser padrinho afetivo de Mateus, iniciando o processo de vinculação entre eles. Em dezembro do mesmo ano, manifestou o desejo de adotá-lo, dando início ao estágio de convivência. “Descobri que ele estava destituído do poder familiar e que não tinham encontrado uma família substituta pelo CNA. Nesse momento, como já estava inscrito no Cadastro, pleiteei a adoção junto à unidade judiciária da comarca. O processo tramitou rapidamente, dando início ao estágio de convivência, de 90 dias, em dezembro como presente antecipado de Natal”, recorda.
A paternidade trouxe para o designer, além da criação de um vínculo de afeto para a vida, como ele diz, novos desafios. “Minha rotina e liberdade de homem adulto, solteiro, que morava sozinho, mudou totalmente com a chegada do meu filho. Eu já havia participado, nos últimos anos, esporadicamente, de algumas reuniões em grupos de apoio à adoção, que me ajudou, entre tantas coisas a aceitar que tudo iria mudar após a paternidade. E foi o que, realmente, acabou ocorrendo. É bem trabalhoso e, muitas vezes, fatigante, ser pai sozinho. A contestação de um filho pré-adolescente não é fácil para nenhum pai ou mãe, seja solteiro ou casado, mas não me arrependo da adoção em nenhum momento. É gratificante o sentimento de uma história que está sendo construída, que tem como base amor, cuidado e participação”, pontua. Ele continua inscrito no CNA a espera de um irmão ou irmã para o filho.
Para além dos desafios com a criação de José Mateus, Charles diz ter vivenciado alguns episódios de preconceito por ser pai solteiro e pela adoção. “Apesar das famílias hoje terem estruturas mais fluídas, para além da formação pai, mãe e filhos, ouvi principalmente perguntas em relação à paternidade adotiva de uma criança mais velha ou porque adotar se você pode ser pai biológico e coisas do tipo. Já na escola, tive que solicitar ser incluído no grupo de mães num aplicativo de troca de mensagens. Havia um entendimento bem excludente, que era um grupo para todos os alunos que conviviam com mães. Eu que tive que buscar me inteirar, para explicar para o grupo que meu filho, por exemplo, não tinha mãe. Enfim, como professor, eu identifico claramente o preconceito, mas o associo à falta de informação. Compete a mim, sempre que posso, esclarecer. É a estratégia que uso para transformar algo ruim em algo bom”, observa.
Segundo a juíza da Vara da Infância e Juventude de Jaboatão dos Guararapes, Christiana Caribé, das 47 adoções realizadas entre 2015 e 2018 na comarca, seis foram de homens solteiros e cinco de mulheres solteiras. “Percebo, com esse número, ainda discreto, que os homens vêm buscando vivenciar a paternidade de diferentes formas. Temos observado uma quebra de paradigmas, pois, no passado, não víamos adoções por homens solteiros. É preciso quebrar o preconceito. Homens solteiros, independentemente de sua orientação sexual, são capazes de oferecer um ambiente adequado ao desenvolvimento de crianças e adolescentes. Homens e mulheres são igualmente capazes de educar e amar. Esse papel e capacidade não são exclusivos da mulher. Aliás, atualmente, vemos crescer o número de mulheres que não desejam ter filhos. Enquanto há aumento de homens que querem ser pais”, avalia.
Ao adotar sozinho ou numa união homoafetiva, o homem tem garantida a licença com as mesmas regras estabelecidas para licença maternidade, contidas na Lei 8.213/1991, artigo 71, que estabelece 120 dias de licença na iniciativa privada e 180 dias no serviço público. A garantia foi estabelecida pela Lei 12.873, sancionada em 2013, que entrou em vigor em janeiro de 2014. Segundo a interpretação corrente da lei, caso a adoção seja feita com outra pessoa (seja homem ou mulher), apenas uma delas tem direito à licença.
Antes da lei, o TJPE proferiu uma decisão inédita no Judiciário estadual em 2011, ao conceder licença paternidade de 180 dias para um servidor do TJPE que havia adotado sozinho uma criança. A decisão, do desembargador José Fernandes de Lemos, então presidente do Tribunal, destaca que a convivência entre pai e filho é essencial para a criança. “O acompanhamento afetivo e efetivo do filho pelo pai vai ser determinante para toda a sua história”, referendava o magistrado.