Portaria permite que alto escalão do governo receba mais que o teto

A farra dos supersalários poderá ser contida com o projeto de lei que corta os penduricalhos e estabelece as verbas indenizatórias que podem ser pagas fora do teto remuneratório, de R$ 39,2 mil mensais, o PL nº 6.726/2016. Aprovado, recentemente, pela Câmara dos Deputados, a proposta retornou para o Senado Federal. Houve muita pressão de servidores e parlamentares para que o assunto entrasse na pauta como uma espécie de prévia da reforma administrativa. Mas o tratamento privilegiado para alguns continua, como a permissão de duplo teto para aposentados e militares da reserva com cargos de comissão e assessoramento no Executivo, dizem especialistas.

O problema é a discussão jurídica sobre as possíveis formas de barrar esses ganhos inusitados que oneram o bolso do contribuinte e beneficiam integrantes do primeiro escalão do governo lotado de militares. Para alguns, basta um decreto legislativo. Para outros, somente com mudança de entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF).

“Se a sociedade não se manifestar, o Brasil vai continuar convivendo com as benesses”, assinala Susana Botár, sócia do Escritório Fischgold Benevides Advogados e assessora jurídica da Frente Servir Brasil. Ela explica que a Portaria n° 4.975, de 29 de abril de 2021, do Ministério da Economia, mudou os rumos criando o teto dúplex. Os servidores ativos com altos salários, quando assumem cargos em comissão, as verbas são somadas e o valor que ultrapassar o teto é descontado. Mas os inativos e reformados podem somar os dois valores. Por isso, muitos ministros da ala militar tiveram incremento nos ganhos de até 69%.

A prerrogativa de duplo teto era apenas para médicos, professores e profissionais da saúde. Importante, porque muitos trabalhavam em dois empregos e só recebiam por um. Então, desistiram do segundo e a população ficou sem atendimento. “Se desestimulava a acumulação autorizada pela Constituição, e se retirava profissionais médicos de cargos em hospitais públicos, já que, mesmo trabalhando o dobro da carga horária, receberam, por essa interpretação, a remuneração de apenas um dos vínculos”, diz Susana Botár. “Como a Constituição não veda que o servidor ou militar inativo acumule seus proventos com cargos, empregos e funções públicas na administração, o governo decidiu pegar carona na interpretação do STF e favorecer seu alto escalão”, aponta.

Na análise da advogada, falta um ajuste na legislação para evitar os extremos. “O ideal seria prever que, em casos de cumulação lícita cujo somatório dos salários ultrapasse em muito o teto, em vez de cortar 100% de um dos vínculos, houvesse um limite. Dessa forma, o servidor, em tese, não trabalharia de graça, mas também não receberia dois vencimentos muito altos dos cofres públicos”, reforça.

Perdas e ganhos

O economista Gil Castello Branco, secretário-geral da Associação Contas Abertas, lembra que existem 15 projetos de decreto legislativo (PDL), de parlamentares de direita, de centro e de esquerda, para revogar a portaria do teto dúplex. “Todos aguardando despacho do presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL)”, afirma. Mas a expectativa continua sendo que Lira, aliado do presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), continue engavetando as propostas. “O que me assustou foi ver que um deles (PDL) é do PT, um do PDT, mas tem também do Novo, supostamente aliado de Bolsonaro”, diz. “Todos os projetos estão parados na Mesa, dependendo exclusivamente do Arthur Lira”, complementa Vladimir Nepomuceno, diretor da Insight Assessoria Parlamentar.

Legitimidade questionada

Os deputados questionam a legitimidade da Portaria nº 4.795/2021, que criou o teto duplo, pela inconstitucionalidade e pelo aumento de despesas em momento de pandemia e de socorro à população mais necessitada.

“Sem contar que se encontra em tramitação na Câmara uma proposta de reforma administrativa, propondo economia nas despesas de pessoal”, reforça Vladimir Nepomuceno, diretor da Insight Assessoria Parlamentar. “É imperiosa e urgente a revogação da portaria do Ministério da Economia pelas inconsistências e pelo desrespeito ao uso da verba pública. Os mesmos que editam atos de congelamento salarial aos milhões de servidores, em especial os da linha de frente no combate ao coronavírus, elevam os salários dos que ganham mais, o que chega a ser um escárnio”, diz.

Thiago Queiroz, diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), lembra, ainda, que existem três emendas à Proposta de Emendas à Constituição (PEC) da reforma administrativa, a PEC 32/2020, todas de autoria da bancada do PT, que, entre outros pontos, pretendem colocar uma trava na Constituição para o pagamento de verbas acima do teto remuneratório. “Essas emendas alcançam a portaria, em relação aos militares reformados que assumem cargos ou funções comissionadas.”

As de número 14 e 15 e 16, do deputado Rogério Correia (PT-MG), tratam, entre outros pontos, de evitar abusos remuneratórios e impedir a excessiva militarização de cargos civis. E, também, alteram o artigo 37 da Constituição, para estabelecer que o limite remuneratório incidirá sobre o somatório de “todos os valores percebidos a título de pensão, proventos, remuneração do cargo, emprego, posto, graduação militar e do valor do cargo em comissão ou função de confiança, e estabelece que apenas as parcelas de caráter indenizatório previstas em lei poderão exceder ao teto”, reforça Queiroz. Mas talvez todo o esforço seja em vão.

STF

Segundo um técnico do Senado que não quis se identificar, o Ministério da Economia está correto ao seguir os entendimentos do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal de Contas da União (TCU). “Infelizmente, todos esses decretos ou emendas terão a constitucionalidade questionada. A única saída é provocar o STF. A Suprema Corte vai ter que mudar seu entendimento. Do contrário, será tempo perdido. Pode parecer injusto para a sociedade, mas está de acordo com a lei”, diz. Esse, aliás, foi o argumento do ministério. O órgão alega que está seguindo “entendimentos jurisprudenciais do STF e do TCU, aprovados pelo Advogado-Geral da União”. Por ano, a fatura pode chegar a R$ 181,3 milhões aos cofres públicos. “Cerca de mil servidores serão impactados pelas novas regras, sendo que, em mais de 70% dos casos, os vínculos estão relacionados a médicos e professores”, detalha a pasta.

Correio Braziliense

Pedro Augusto é jornalista e repórter do Jornal VANGUARDA.

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