A Biblioteca da minha cidade

por Marcel Moura, Abril de 2017

Foi muito bom ter finalmente em mãos a minha tese de doutorado. A sua produção tomou-me quatro anos inteiros e lembro-me bem do que senti quando pude finalmente receber a versão final do meu “Burst dynamics in quase-2D disordered systems: experiments on porous media two-phase flows”.

O primeiro sentimento foi exatamente uma raiva danada desse título que é tão desnecessariamente longo. Queria ter dado à minha tese um título curto e memorável. Quem consegue esquecer a ordem das palavras em “O tempo e o vento”, ou em “A insustentável leveza do ser”, ou em “Por quem os sinos dobram”?

Um título curto e brilhante é a jóia da coroa de um livro bem acabado, mas eu não tive tempo o bastante para escrever pouco e por isso o título acabou saindo tão longo. Escrever pouco toma muito tempo. O meu manuscrito “Burst dynam…” foi enfim aceito pela Universidade de Oslo, Noruega, como requisito central para a minha graduação como doutor em física. A raiva pelo longo título passou um pouco e pude enfim aproveitar uma certa alegria e senti-me até um pouco orgulhoso. Mais ou menos como no dia em que eu joguei uma pedra meio quadrada no lago da UFPE e ela quicou 5 vezes antes de afundar.

Precisei de quatro anos inteiros para o doutorado e antes disso precisei de mais dois para o mestrado e antes disso precisei de mais quatro para a graduação e antes disso precisei de muito tempo.

Educar-se toma tempo. Lembro-me bem que durante os anos do colégio, costumava passar algumas tardes na biblioteca da minha cidade, a biblioteca municipal Álvaro Lins em Caruaru, Pernambuco. Pelos idos de 2 mil e pouco ela localizava-se no primeiro andar do prédio da antiga Estação Ferroviária, no centro da cidade. Lembro-me claramente de como era bem tratado lá. As bibliotecárias faziam-me sentir bastante confortável naquele ambiente e o ato de devolver ou renovar um livro era sempre motivo pra alguma conversa rápida no balcão, enquanto elas escreviam a data da próxima devolução no cartão que ficava afixado à última página do livro.

Naquela biblioteca tive contato com alguns dos livros mais importantes da minha vida, cujos conceitos (fórmulas matemáticas, construções geométricas, leis físicas etc.) carreguei comigo para a vida profissional. Muitos desses conceitos foram fundamentais para a escrita da minha tese de doutorado.

É bem verdade que boa parte deles eram demasiadamente complicados para a minha cabeça de 15 anos e eu só fui entendê-los de maneira mais aprofundada na universidade (estou ainda longe de entender muitos deles). No entanto, o que realmente importou naquele momento, foi o fato de que eu pude ter um contato inicial com essas ideias e eu sabia que, a todo instante, os livros que as continham estavam ali, fisicamente ali, na penúltima prateleira da segunda estante da biblioteca de Caruaru.

O fato de eu saber que eu podia ir àquele prédio, e podia consultar aqueles livros, levá-los pra casa, devolver e pegar de novo, de certa forma me fazia bem. Era um conforto esquisito em saber que aquele material estava ali, à minha disposição, de graça, o tempo todo. Era um conforto esquisito e eu gostava dele. O livro de cálculo do Munem tinha uma capa preta com uma construção geométrica muito curiosa cheia de linhas amarelas. O livro de física do Halliday era grande e azul. Tinha uma secção enorme de livros de bolso de literatura brasileira e estrangeira, e outra que era normalmente fechada para o público, a qual eu podia apenas espiar pelo vão da porta. Acho que esses eram livros raros da coleção particular do Álvaro Lins, doados pela sua esposa para o acervo municipal e que portanto mereciam cuidado especial.

Tendo tantas memórias daquele lugar, foi muito natural para mim ter decidido separar um exemplar da minha tese para transportar da Noruega a Caruaru e finalmente fazer uma simbólica doação daquele livro, o meu livro, à biblioteca daquela cidade, a minha cidade. É um gesto mínimo e sem maiores consequências práticas, no entanto, ainda assim importante para mim. É a minha forma de agradecer àquela instituição pública, por ter estado comigo, por me ter sido amiga e por ter ajudado a nutrir em mim a curiosidade e a vontade de seguir uma carreira acadêmica.

Fiz uma dedicatória breve e uma embalagem robusta, para que o volume não fosse danificado durante os 3 vôos entre Oslo e Recife. No entanto, ao chegar finalmente à entrada da biblioteca, encontrei-a muito diferente. Aliás, não a encontrei. As portas da biblioteca estavam fechadas e não havia sinal algum que indicasse ser aquilo por motivo excepcional. A biblioteca não estava fechada somente naquele dia, ela estava realmente fechada.

Pensei por um momento “Como pode uma cidade que tem somente uma biblioteca municipal permitir que isso aconteça?” Tentei me convencer que talvez fosse por algum motivo estrutural excêntrico. Uma goteira sobre os livros, uma instalação elétrica com risco de incêndio, uma parede querendo desabar, coisa do tipo. Tentei me convencer de que quem quer que fosse o gestor responsável por esse setor na administração municipal iria cuidar rapidamente de sanar o dano e que a falta de um aviso “biblioteca temporariamente em obras” fora somente um descuido de algum funcionário mais desatento.

No entanto, essa não foi a motivação por trás daquela situação e a biblioteca, a única biblioteca pública municipal de Caruaru, continua fechada.

Decepcionado, trouxe de volta o livro comigo para a Noruega e ainda agora vejo-o aqui na minha estante em Oslo. Temos por aqui 19 bibliotecas públicas municipais em pleno funcionamento, inclusive uma dentro da prisão municipal.

Desejo sinceramente que esse texto torne-se em breve obsoleto. Que os caruaruenses como eu possam voltar a fazer uso de uma biblioteca municipal. Que algum aluno por lá, talvez entediado com o dia-a-dia que não muda, possa saber que existem caminhos diferentes e que alguns deles valem a pena ser seguidos. A biblioteca municipal pode ser, para esse aluno, uma porta pra um futuro melhor. Tomara que ele não encontre as suas portas ainda fechadas.

 Marcel Moura é cientista, Mora em Oslo, na Noruega e é filho do radialista Marco Moura

Natural do Rio de Janeiro, é jornalista formado pela Favip. Desde 1990 é repórter do Jornal VANGUARDA, onde atua na editoria de política. Já foi correspondente do Jornal do Commercio, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo e Portal Terra.

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