Imagens da polêmica reunião ministerial que vem causando turbulência há dez dias em Brasília jogam luz sobre uma briga envolvendo a preservação do patrimônio cultural do país e a visão que Jair Bolsonaro tem do assunto. Na disputa entre órgãos de proteção e o mercado da construção civil e do turismo, o presidente atua para tornar a atuação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan, mais maleável frente a interesses econômicos.
O principal órgão de preservação do país tem na sua lista de bens tombados a paisagem cultural do Rio de Janeiro, a região da Luz e o Teatro Oficina, ambos em São Paulo, o conjunto arquitetônico da Pampulha, em Belo Horizonte, o centro histórico de Salvador, além de diversos sítios arqueológicos. São áreas que, valorizadas pela localização e também pela própria condição e a paisagem histórica, ficaram na mira das construtoras e das redes de hotéis.
Na reunião do fim de abril, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, disse que, com as atenções voltadas para o coronavírus, era hora de fazer a “boiada passar”, e incluiu nesse rebanho obras paralisadas pelo Iphan.
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Na ocasião, Bolsonaro também fez críticas ao órgão e disse que ele vem atrapalhando a conclusão de obras. Lembrou as lojas Havan, do empresário Luciano Hang. Segundo o presidente, o Iphan interrompe projetos por causa de “cocô petrificado de índio”.
Desde maio, o Iphan é dirigido por Larissa Peixoto, mulher de um amigo da família Bolsonaro, formada em hotelaria e com carreira na pasta do Turismo. Ela ocupa o lugar de Kátia Bogéa, historiadora exonerada em dezembro.
Isso acendeu o alarme do Ministério Público e das entidades que defendem a preservação do patrimônio. A nomeação de Peixoto, aliás, está sendo questionada na Justiça. Existe uma ação pública pedindo o cancelamento da decisão do governo, medida amparada por protestos de ex-dirigentes do órgão e de entidades como o Instituto de Arquitetos do Brasil. Enquanto isso, o governo faz avançar um modelo de contratações que desconsidera a capacidade técnica de quem ocupa altos cargos no Iphan.
Vale lembrar que do ano passado para este, o Iphan perdeu metade dos repasses do governo, que em 2019 foram de cerca de R$ 500 milhões.
A região nos arredores do Mercado Modelo, no centro histórico de Salvador, é uma das que têm gerado preocupação entre servidores do instituto. Está num perímetro de tombamento visado por construtoras, bem ao lado do Pelourinho, considerado patrimônio da humanidade pela Unesco. Próximo dali, está embargada a obra de um condomínio chamado La Vue, da Porto Ladeira da Barra Empreendimentos.
Essa construção foi a razão de Marcelo Calero, hoje deputado federal, ter pedido demissão do comando do Ministério da Cultura no governo Temer, há quatro anos. Com o seu pedido de afastamento, ele acusou Geddel Vieira Lima, que comandava a Secretaria de Governo à época, de fazer pressão para que a obra do La Vue fosse liberada pelo Iphan.
Dono de parte do empreendimento, Geddel foi afastado, e a obra, interrompida. Uma nomeação do governo Bolsonaro há uma semana, no entanto, reavivou o assunto. Marcelo Álvaro Antônio, atual ministro do Turismo, alçou Marco Antônio Ferreira Delgado a chefe de gabinete do Iphan. Delgado foi assessor de Geddel e fez carreira no Turismo desde governos petistas.
Segundo o presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil, Luciano Guimarães, uma das maiores ameaças à atividade de preservação do patrimônio histórico e cultural está hoje entre os parlamentares.
O deputado Fábio Schiochet apresentou um projeto de lei que trata da “necessidade de adequação do Decreto-Lei n? 25, de 1937 [de proteção ao patrimônio histórico e artístico nacional], à realidade constitucional do Brasil no que se refere ao procedimento de tombamento”.
Schiochet é presidente do PSL em Santa Catarina, estado de origem de Luciano Hang. As lojas Havan tiveram uma construção paralisada em Rio Grande, depois que uma equipe do Iphan identificou fragmentos antigos de cerâmica no local.
No texto do projeto de lei, o deputado diz que a adequação “impõe-se na medida em que o tombamento vem ha muitos anos se mostrando uma ferramenta perniciosa e nefasta para a preservação do patrimônio cultural brasileiro, pois negligencia a realidade socioeconômica da regiãao na qual o bem objeto de tombamento esta inserido”.
Na visão dele, isso é “agravado em casos que envolvam o tombamento de regiões, bairros ou cidades, contribuindo muito mais para o perecimento do patrimônio cultural brasileiro do que para a sua efetiva preservação”.
Luciano Guimarães, presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil, diz que são vários os conflitos causados pelo tombamento da paisagem cultural do Rio, que ignoram o fato de que “o patrimônio histórico é fundamental para a preservação e a construção de uma identidade cultural de um povo”.
Portanto, ele acrescenta, a atividade da preservação do patrimônio também é “fonte de desenvolvimento social e econômico”. Guimarães lembra os exemplos de preservação de Espanha, Itália e Grécia.
Segundo Claudia Pires, membro do Conselho Superior do IAB e Coordenadora da Comissão de Politica Urbana da instituição, os nomeados pelo governo para as superintendências do Iphan não têm competência técnica ou experiência.
Ela menciona a nomeação da turismóloga Monique Aguiar, uma blogueira do Rio de Janeiro, cidade justamente onde, como diz Guimarães, a valorização imobiliária fez com que as construtoras passassem a pressionar o poder público pela liberação de empreendimentos que podem causar danos ao patrimônio cultural.
Outros conflitos nessa área envolvem ainda paralisações de obras de hotéis das redes Go Inn e Bristol no limite de tombamento do conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte, além de pressões para construções em galpões na cidade de Paranaguá, no Paraná.
Folhapress