Artigo: A triplicidade contratual da gestação sub-rogada

A TIPICIDADE CONTRATUAL DA GESTAÇÃO SUB-ROGADA
 
Amanda Gondim Dantas Rodrigues, é estudante de Direito da Universidade Católica e estagiária do Escritório Rodrigues & Tabosa.
 
O direito de família é um dos ramos do direito que mais tem sofrido modificações com a evolução da sociedade, sobretudo após a promulgação da Constituição Federal de 1988 e com os valores e princípios por ela implementados. Hoje, a instituição familiar está fundamentada e instrumentalizada em favor da afetividade. Através dela, a família deixou de ser aquela constituída unicamente pelo casamento e pela filiação carnal, passando a ser tecida pela complexidade das relações afetivas, que o ser humano constrói entre a liberdade e a responsabilidade. Em outras palavras: houve a flexibilização das configurações familiares e o rompimento com o modelo exclusivista, matrimonial e biológico anterior.  

Os crescentes avanços biotecnológicos, principalmente quanto às técnicas de reprodução humana assistida, repercutem diretamente no âmbito familiar, uma vez que garantem ao indivíduo mais uma possibilidade de criação do vínculo de filiação e, consequentemente, trazem a necessidade de novos delineamentos jurídicos para a respectiva adequação do ordenamento aos referidos progressos. Essas técnicas podem subdividir-se em: doação de gametas e cessão de útero. A última, também conhecida como gestação por sub-rogação, maternidade por substituição, maternidade solidária e, popularmente identificada como barriga de aluguel. Trata-se de procedimento que envolve a participação de terceira pessoa no projeto parental e tem sua prática cada vez mais difundida no Brasil.

Entretanto, apesar de sua reconhecida importância na concretização de projetos parentais – seja por indivíduos que desejem constituir família individualmente, casais homoafetivos ou até mesmo casais heterossexuais incapazes de contemplar a gestação natural – e, consequentemente, substancial participação no exercício da dignidade humana, a referida técnica não encontra regulamentação legal no país, estando sua aplicação limitada à normas de natureza ética, como a Resolução 2.121/2015 do CFM, que por sua vez são destituídas de caráter cogente. Um dos requisitos exigidos pela retromencionada Resolução, para a realização da gestação sub-rogada, é o estabelecimento de termo de compromisso entre as partes interessadas no projeto parental. Termo este gerador de polêmicas no âmbito jurídico no que concerne à sua validade. 

As técnicas de reprodução humana possuem reflexos interdisciplinares, abrangendo não apenas a esfera do Direito, como também da bioética, da religião, da questão cultural, social e do biodireito. Por estar inserida nessa realidade complexa que envolve ciências variadas é que inexiste pacificação quanto ao tema.

Tendo em vista a multidisciplinaridade de searas afetadas pela consideração de validade contratual do termo de compromisso da gestação por substituição, torna-se mais dificultoso, porém necessário, o seu reconhecimento, pois que a ausência de normas jurídicas que regulamentem tal instituto gera grande insegurança jurídica relativamente ao trato acordado entre as partes. Além disso, pode pôr em risco a efetivação do direito constitucional da liberdade de planejamento familiar e ensejar a criação de inúmeros conflitos judiciais em razão de uma prática indiscriminada e do livre arbítrio percebido pelos magistrados na solução de tais litígios. 

Os novos valores trazidos pela Constituição Federal de 1988, como anteriormente aludido, dissolveram com o modelo tradicional de família matrimonializada, biológica, patriarcal e inflexível, mormente com a inserção do princípio da igualdade – que legitimou a pluralidade de arranjos familiares – conjugado com a liberdade de planejamento familiar, prevista pelas vias constitucional e infraconstitucional, conferindo aos cidadãos autonomia de escolha na constituição da entidade familiar que melhor lhe adeque.

Nesse mérito, é possível afirmar que as inovações tecnológicas em matéria de reprodução humana assistida repercutiram diretamente no direito de família, pois que são meios acessórios de planejamento familiar. Ademais, os novos procedimentos médicos, em especial a gestação por sub-rogação, representaram um grande avanço à parcela da população incapaz de gerar sua prole de maneira natural, passando essa minoria a ter a ciência como aliada na elaboração de projetos parentais.

Contudo, recai sobre o instituto da cessão de útero além de grande estigma social, relutância na sua recepção formalizada, o que prejudica a qualidade de vida dos grupos que dele se beneficiam, em razão da condição de vulnerabilidade à que são expostos. A ausência de limitação legal oportuniza uma autonomia descomedida, com possível violação de princípios jurídicos, bioéticos e de biodireito.

A problemática do tema gira em torno de três pontos: 1. a falta de amparo legal acarreta insegurança jurídica ao termo de compromisso, revestido apenas por normas éticas; 2. a regulamentação mediante nova tipificação contratual não prevista no ordenamento também gera insegurança, posto que rompe com as regras que norteiam os contratos; e 3. a admissão da validade conforme as espécies contratuais existentes representaria uma verdadeira objetificação do ser humano e afronta à dignidade humana.

Considerando a restritiva legislação contratual do ordenamento jurídico brasileiro e o estágio atual dos valores culturais, religiosos e morais relativamente à maior parte da sociedade, não há, hoje, capacidade de comportar a prática da maternidade de substituição lícita e o reconhecimento de sua validade contratual. Isto porque apesar do contrato existir, não atende a todos os requisitos gerais dos negócios jurídicos, o que acaba por obstar a sua validade. Ele existe, mas é inválido. Todavia, é incontestável que o emprego de tal técnica tem dado saltos quantitativos no âmbito nacional, incidindo diretamente sob diversas questões controversas, mormente quanto ao direito de família e as relações que dele emanam, que ficam sem solução enquanto não há uma normatização a respeito do tema, não podendo a legislação ignorar e ficar inerte à realidade que acomete grande parte da população.

Destarte, não encontrando solução ou respaldo para a polêmica aqui analisada no conjunto de normas que regem o país, é mister que se busque, através do direito comparado como instrumento de auxílio na construção e interpretação de regras que devem vigorar nacionalmente ou da priorização da análise das propostas de lei em andamento a respeito do assunto, a forma mais satisfatória de converter a situação precária dos que dependem desse instituto para concretizar seus projetos parentais, além da adequação do ordenamento jurídico brasileiro à realidade social, haja vista a insustentabilidade de uma legislação inflexível frente à dinamicidade das relações humanas, que interferem diretamente no âmbito jurídico.

 
 

Natural do Rio de Janeiro, é jornalista formado pela Favip. Desde 1990 é repórter do Jornal VANGUARDA, onde atua na editoria de política. Já foi correspondente do Jornal do Commercio, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo e Portal Terra.

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