No momento em que o país, com algum atraso, resolve debruçar-se sobre a urgente necessidade de regular o poder e a responsabilidade das Big Techs da internet, um grande livro que me foi apresentado pelo cunhado Josué Honório poderia informar o debate. Um debate que, como tudo nesse país, arrisca-se a perder na polarização.
Em seu recente “The Constitution of Knowledge” (2021), Jonathan Rauch, da “Brookings Institution”, faz um paralelo entre a Constituição Política e o que ele chama de Constituição do Conhecimento. Para ele, ambas são formadas por um conjunto de valores, normas e instituições. Diferentemente da Constituição Política, a Constituição do Conhecimento tem normas e valores que, embora não escritos, são interiorizados e praticados pelos que se identificam com certas tradições filosóficas e científicas.
Tradições que vêm sendo construídas ao longo de séculos de formulações de hipóteses e teorias a partir de fatos, dados e rigor lógico-analítico. São filósofos, cientistas, acadêmicos, jornalistas profissionais e experts que se submetem a práticas não escritas, mas que avançam o conhecimento. Entendido este como uma construção coletiva que emana do entrechoque de proposições. O contraditório, o livre debate e a verificação à luz dos fatos constituem as práticas do que Rauch denomina de “comunidade baseada na realidade”. Em sua metáfora feliz, existiria uma espécie de funil cuja abertura de cima seria larga o bastante para receber as mais variadas hipóteses e proposições. Mas cuja abertura de baixo deixaria passar apenas aquelas poucas que sobrevivem ao debate metodologicamente rigoroso e informado pelas evidências. Esse processo de conhecimento baseia-se em duas regras básicas. A primeira, a regra da falibilidade, considera que não existe palavra final; qualquer proposição pode ser refutada por novas evidências, e substituída por uma nova, segundo insights de Charles Peirce e Karl Popper. A segunda, a regra empírica, segundo a qual ninguém pode invocar o argumento da autoridade. Ambas dependem da constante interação de cientistas, experts e filósofos, através de experimentos que submetem as hipóteses à verificação dos fatos e dados. Em processos de erros e tentativas. Essa interação de atores operando sob certas regras interiorizadas constitui a “comunidade baseada na realidade”. Produz o conhecimento que nunca é definitivo e nunca é individual. É sempre dinâmico e construído coletivamente em rede e em processos de mútua persuasão sobre proposições testadas e validadas pela “comunidade baseada na realidade”.
Forte nessas reflexões, o livro de Rauch disseca os detalhes de como a difusão da desinformação feita pela direita autoritária ameaça a Constituição do Conhecimento. E mostra que essa ameaça também provém da cultura do cancelamento avançada pela esquerda identitária. Embora desenvolvidas a partir de pressupostos e objetivos diversos. Conquanto sejam controversas as soluções que cogita na parte final do livro, talvez muito centradas no contexto americano, seu brado de alerta pode ajudar outras sociedades a tentar novos caminhos que as afastem das ameaças ao conhecimento tão penosamente conquistado em séculos de embate contra autoritários e obscurantistas de todos os matizes. É nesse contexto que a regulação da internet tem sido avançada em muitos países. Hoje todos já sabemos ser ingênuo e não praticado o dogma da neutralidade da internet que, no direito brasileiro, está inscrito no artigo 3º do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014). Os algoritmos usados nos modelos de negócios dos provedores são por eles organizados com o objetivo de capturar audiência e lucros. Sem transparência nem responsabilização. Isso é muito poder. Como nos primórdios da mídia tradicional, esse poder, como qualquer outro, precisa ser disciplinado pelo direito a partir da Constituições Política. Mas também pela Constituição do Conhecimento de Rauch.
Maurício Rands, advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford