Por Maurício Rands
Em meio à cacofonia e ao alarido tóxico do nosso quotidiano, surge uma epidemia silenciosa. Estamos condenados à barulheira que ouvimos em casa, na rua, na praça, na academia, no bar, na boate, na festa de casamento ou na proximidade do carro de som de um trio elétrico. Esporadicamente sofremos com as rajadas de fogos comemorativos de uma data ou uma conquista. Que levam ao desespero os nossos cães de estimação, ainda mais sensíveis aos estrondos. A essa hiperexposição aos ruídos, acrescentamos alguns maus hábitos. Como o uso constante dos fones de ouvidos em volume elevado (o nível correto é aquele em que continuamos a ouvir as vozes e outros sons do entorno), o uso inadequado de cotonetes ou outros instrumentos que introduzimos nos ouvidos, e o acúmulo de cera. Quando a esses fatores acrescentamos outras causas como as doenças congênitas, as perdas pelo envelhecimento, os acidentes ou eventos traumáticos intensos, a falta de diagnóstico, a hipertensão e as diabetes descontroladas, temos um painel das causas da epidemia silenciosa. Uma epidemia da qual pouco se fala. E que pouco se previne. Na esfera pública, como na individual. A zoada intensa e permanente pode nos condenar ao silêncio da perda auditiva.
Há estudos sugerindo que uma em cada cinco pessoas no mundo padece de alguma redução da capacidade auditiva. A estimativa do Global Burden of Disease é de que mais de 1,5 bilhão de seres humanos convivem com a perda de audição. A Organização Mundial da Saúde projeta que cerca de um bilhão de pessoas têm alto risco de perder a audição nas próximas décadas. Por isso, acaba de classificar a perda auditiva como uma de suas cinco prioridades para o século 21. E disponibiliza gratuitamente um aplicativo (hearWHO) que nos permite avaliar nossa capacidade auditiva. Isso pode nos convencer a buscar atendimento profissional para prevenir uma deterioração ainda maior.
Outro dia, numa consulta de alto nível com que me brindaram, as dras Luiza Gondra e Laíse Galindo me chamavam a atenção para o que está ocorrendo em larga escala. Não apenas as pessoas de mais idade estão experimentando perdas auditivas acentuadas. Até mesmo crianças de 10 ou 12 anos têm sido atendidas por problemas auditivos. Em muitos casos, resultantes da intensa exposição aos vídeos games e seus barulhos intensos de tiros de guerras e outros enredos.
Somos uma nação que confunde balbúrdia e gritaria com alegria e felicidade. Logo, refratária à leitura, à reflexão e à vida interior. Que prefere a estridência digital das redes sociais. E o som alto das músicas no bar, na rua ou na praia. Ou em casa, como se ninguém tivesse vizinhos que possam não gostar da música barulhenta que lhe impõe o morador do lado. O problema fica ainda mais grave nos bairros populares. Neles, as leis municipais de afastamentos e taxas de ocupação para as edificações quase sempre são ignoradas. Dá para imaginar o sofrimento de alguém que precise dormir, esteja enfermo ou precise ler ou estudar. À escola já precária, junta-se mais este impedimento à nossa juventude que queira estudar e more num bairro popular. Uma imposição da nossa imoral desigualdade social que é agravada pelos maus hábitos, falta de urbanidade e por uma cultura que confunde algazarra com espontaneidade e descontração.
Quando estamos em grupo num restaurante quase nunca nos preocupamos com as mesas ao lado. Dia desses, em viagem ao exterior, Patrícia e eu encontramos uns amigos e fomos todos diretamente para um restaurante. Mesa grande, barulho maior. Fomos advertidos pelo garçom a pedido de duas mesas ao lado. Vergonha que poderíamos ter evitado se não confundíssemos a alegria do encontro com a estridência de todos falando ao mesmo tempo como se o restaurante inteiro quisesse nos escutar. Não seria de todo mal se trouxéssemos para o nosso quotidiano um pouquinho da sabedoria milenar dos orientais: a verdade não grita.
Maurício Rands, advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxfords