A cardiologista e intensivista Ludhmila Abrahão Hajjar, 42, diretora de ciência e tecnologia da Sociedade Brasileira de Cardiologia, diz que está havendo um otimismo exagerado em relação à cloroquina, que há riscos cardíacos no uso da droga e que jamais a adotaria para casos leves.
“Cloroquina não é vacina. Está sendo vista como salvadora, e não é. Mas se você fala isso, já começa a apanhar porque virou uma questão nacional de pressão. Mas a realidade científica é essa, não tem evidência”, diz a médica e professora do InCor (Instituto do Coração).
Ela fez parte de comissão de especialistas que se reuniu com presidente Jair Bolsonaro há duas semanas para discutir a cloroquina. Bolsonaro ouviu deles sobre a falta de evidência da droga, porém, seguiu defendendo o seu uso.
Hajjar também integra um grupo de pesquisadores que tem estudado a eficácia e a segurança da cloroquina. Dados preliminares de uma pesquisa em Manaus (AM) apontaram que altas doses da substância aumentam a taxa de letalidade em pacientes graves internados.
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Segundo a médica, o principal gargalo da pandemia tem sido a falta de estrutura das UTIs brasileiras. “Não é só ter respirador. Quando eu intubo um doente, ele fica 15 dias na UTI. Vai precisar de fisioterapeuta 24 horas, antibiótico. Muitas vezes, morre de infecção, maus tratos, não tem gente para cuidar, não tem profissional, não tem material”, afirma.
FOLHA – Há otimismo exagerado em relação à cloroquina?
LUDHMILA – Muito. Isso reflete o que a gente está vivendo, milhares de pessoas infectadas, mortes e vidas em risco. E, ao mesmo tempo, o impacto socioeconômico e certos países buscando soluções rápidas. Mas, infelizmente, não temos.
Os ensaios in vitro demonstram um potencial da cloroquina de inibir a replicação do vírus e a entrada dele na célula. Porém, em estudos clínicos há uma escassez de dados e muita controvérsia. Boa parte do otimismo vem de um único grupo de pesquisa da França, mas os dados são cientificamente fracos.
De lá pra cá, alguns outros estudos, também não confirmatórios, apontam que há resultados diferentes, contraditórios. Não temos que ter expectativa grande e nenhum achismo em relação ao uso da cloroquina até que se tenha dados comprovados.
FOLHA – O uso da cloroquina pode trazer riscos à saúde?
LUDHMILA – Os efeitos adversos não são desprezíveis. Muita gente argumenta ao contrário: ‘ah, é uma droga segura, usada há anos na malária, na artrite reumatoide, no lúpus, as pessoas usam em casa’. Mas a hipótese é que um dos principais efeitos colaterais dessa medicação seja no coração, a arritmia cardíaca.
Quando a pessoa está com o coração normal é mais difícil que a arritmia aconteça. Mas a gente tem que lembrar que até 40% dos pacientes infectados pela Covid-19 têm algum tipo de injúria ao sistema cardiovascular. É possível que no meio da infecção o sistema vascular fique exposto, fique mais suscetível ao efeito colateral dessa medicação.
Nós temos visto isso aqui em São Paulo, os franceses relataram mais de 30 casos de pessoas que tiveram problemas graves com essas drogas, e as autoridades de lá reforçaram a condição de ela ser usada apenas em ambiente hospitalar. Tanto a cloroquina como a azitromicina podem induzir essa arritmia. A associação das duas torna-se isso ainda mais possível.
FOLHA – E por que essa pressão em torno do uso?
LUDHMILA – Surgiram pessoas que foram acumulando experiências e não evidências científicas, por exemplo, a Nise [Yamaguchi] com os casos da Prevent Senior. Eu já disse: ‘Nise, isso não dá para ser replicado enquanto não tiver estudo comparativo, com grupo controle e que tenha a mesma gravidade da doença, as mesmas comorbidades. Eu não posso pegar isso e começar a pressionar o Brasil’.
Eu jamais adotaria hoje a cloroquina na forma leve, de forma preventiva, sem ter evidência cientifica. Eu não mudaria a prática clínica baseada só em experiência. Cloroquina não é vacina. Está sendo vista como salvadora, e não é.
FOLHA – Quais são as outras opções terapêuticas estudadas hoje para a Covid-19?
LUDHMILA – Uma é com medicação com efeito antiviral e a outra, com ação anti-inflamatória. Vários estudos estão acontecendo no mundo, por exemplo, com os antivirais lopinavir e o ritonavir, que são medicações para o HIV. Tem o remdesivir, o mundo tem uma grande expectativa sobre essa droga. Ela foi eficaz no ebola, um antiviral de amplo espectro, coisa que não existia até recentemente.
Antibióticos a gente dá para todos os pacientes graves porque há muita pneumonia bacteriana associada. Também há estudos sobre terapia anti-inflamatória, como corticoides, anticorpo monoclonal, e com anticoagulante. Muitos hospitais têm usado esse arsenal todo, mas, de novo, nada baseado em evidências.
FOLHA – Ou seja, não existe ainda um tratamento padrão?
LUDHMILA – Não existe. Mas se você fala isso, já começa a apanhar porque a cloroquina virou uma questão nacional de pressão. Mas a realidade científica é essa.
Isso foi falado no encontro com o presidente Jair Bolsonaro. Mas parece que ele não se convenceu, certo?
Ele estava ali mais para ouvir, estava zero combativo. Ele disse: ‘tenho dois problemas: o vírus de um lado e o impacto na mortalidade, e do outro o impacto socioeconômico dessa doença. Então, queria ouvir de vocês o que tem estudo, de resultado preliminar’. Aí as pessoas envolvidas em estudos como eu falaram isso, os estudos estão acontecendo e não temos nada.
Só que ai também haviam pessoas que foram contar experiências pessoais, que são sempre cheias de emoção: ‘ah! eu evitei a internação do meu doente, o meu doente ficou muito bem!’. Não dá. Assim não consigo falar de algo tão sério. Aí cabem todas as interpretações. Ele ouviu e não emitiu opinião.
FOLHA – E sobre o isolamento, o que os cientistas recomendaram?
LUDHMILA – O isolamento surgiu na conversa porque a gente acabou entrando no assunto. O tema central foi a cloroquina. Alguns de nós, nos posicionamos que a melhor estratégia para evitar transmissão era intensificar as medidas de isolamento, não tem nada melhor que isso, infelizmente.
FOLHA – Qual tem sido o impacto da Covid-19 nas UTIs do país?
LUDHMILA – Gigante. Quando eu intubo um doente, ele fica 15 dias na UTI. Lá, vai precisar de fisioterapeuta 24 horas, a UTI tem que ter todas as normativas de segurança em termos de infecção. Muitas vezes, esse doente vai morrer de infecção secundária, maus tratos, não tem gente para cuidar, não tem profissional, não tem material. Essa questão da estrutura das UTIs é central nessa situação atual, é o nosso principal gargalo.
Municípios e regiões que sequer têm UTIs, quando têm, não há estrutura. Eu vejo o número de internações aumentando progressivamente a cada dia, o Brasil batendo mais de cem mortes em 24 horas e as UTIs não estruturadas para receber esses doentes. Uma coisa é Einstein, Sírio, Oswaldo Cruz, Samaritano, outra coisa é a realidade Brasil que não é essa.
FOLHA – E UTI não é feita só de respirador…
LUDHMILA – Exatamente, não é só respirador. Como se eu carregasse o meu respirador debaixo do braço. O respirador dá oxigênio, ponto. Tem que ter alguém cuidando do respirador, aspirando o doente, tem que ter antibiótico, protocolo, tem quer a hora do desmame.
Antes de começar os casos em São Paulo, eu falei com os italianos e eles me deram várias dicas: ‘Ludmila, não se anima, não extube o paciente antes de três dias, cinco dias. O doente está inflamado, é uma anestesia prolongada’, existem muitas pecularidades no tratamento dessa doença.
É uma pneumonia de longa duração. Esse doente ficará 15 dias em média na UTI, de sete a dez dias intubado. Precisando de cuidados de fisioterapia 24 horas, de respirador bom, de antibióticos, de nutrição, de profilaxia de trombose, de prescrição adequada. O desafio é gigantesco.
É preciso um esforço sobre-humano para capacitar rapidamente fisioterapeutas e enfermeiras das enfermarias para atuar na UTI, tem usar telemedicina. Individualmente, eu tenho tentado, não paro de atender telefonemas, ajudando colegas do Brasil todo. Eles dizem: ‘eu intubei, olha esse raio-X, o que eu faço?’ Eu falo: ‘faz isso’. ‘Ah, mas eu não tenho isso’, ‘então vamos fazer assim’. A gente tem feito aulas diárias, lives, contando a experiência de São Paulo, da Itália, da China. Estamos diante de uma guerra, os doentes da UTI podem ter taxa de mortalidade de até 80%.
FOLHA – Como conseguir motivar os profissionais nesse momento de tanto medo, estresse e falta de proteção?
LUDHMILA – Os profissionais de saúde estão muito inseguros com as mortes de colegas, muita gente pedindo demissão. Está superdifícil contratar gente no interior do Brasil. Os governadores têm perguntado como fazer para motivar os profissionais de saúde. É hora de as lideranças assumirem o seu papel e manterem as equipes motivadas e seguras.
A questão financeira também é fundamental. Não basta só chamar para a guerra no sentido motivacional. É preciso buscar formas de remunerar melhor, arranjar um fundo, um adicional insalubridade por tudo o que os profissionais da linha de frente estão vivendo. É guerra, e a gente precisa desses soldados.
Folhapress