Deputados da comissão especial que analisa a proposta de ampliar o acesso no Brasil a medicamentos a base de Cannabis querem dar o aval ao plantio da erva que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) vetou na semana passada.
O esforço, porém, pode ser travado pela bancada evangélica, contrária ao cultivo da maconha por empresas. A comissão foi criada em junho pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para reunir projetos sobre o uso medicinal da planta.
Relator da comissão, o deputado Luciano Ducci (PSB-PR) afirma que pretende colocar a proposta de aval ao plantio em seu parecer. “Vamos apresentar ao Brasil um marco regulatório da Cannabis”, diz. “Queremos trabalhar em uma regulamentação que permita plantar, produzir medicamentos, fazer pesquisas, além de exportar e importar remédios e matéria-prima”, afirma.
Para ele, a decisão tomada pela maioria dos diretores da Anvisa em vetar o plantio foi equivocada. “É uma grande bobagem inviabilizar o plantio para fins medicinais. Se vai plantar, vai ser monitorado.”
Ducci diz que a proposta ainda será discutida, mas a ideia inicial é elaborar na comissão um modelo que inclua regras de segurança e restrições a quem pode cultivar, como algumas empresas. O objetivo final é diminuir o custo.
“Não é para qualquer pessoa. Vai ter que dizer para que, para quem, para qual destino e por que aquela quantidade.”
A previsão é que o relatório seja apresentado em março do próximo ano. Na última semana, um grupo ligado à comissão fez visitas ao Uruguai, país onde o cultivo é permitido.
A bancada evangélica, uma das maiores do Congresso, com 203 parlamentares, reúne deputados contrários a pautas de liberalização do comércio de maconha, ainda que para fins medicinais.
“Somos contra o cultivo e a comercialização da maconha. Somos a favor do medicamento, e ainda mais a favor agora porque existe a possibilidade de fazer sinteticamente o canabidiol”, diz o presidente da Frente Parlamentar Evangélica, Silas Câmara (Republicanos-AM).
Para ele, a comissão não conseguirá aprovar a proposta caso a inclua em seu relatório. “Não vamos deixar passar na comissão e no Congresso.”
A posição segue as declarações da chamada ala ideológica do governo Jair Bolsonaro, como o ministro da Cidadania, Osmar Terra, que pressionaram a Anvisa para que a proposta fosse derrubada.
O ministro chegou a fazer reuniões com indústrias interessadas em pesquisar a produção sintética, mas disse acreditar que o cultivo acabaria legalizando a maconha.
Ducci rebateu. “Não vamos em nenhum momento tratar do uso recreativo, mas, sim, do uso medicinal”, disse em audiência na comissão. “Se a pessoa quer comprar maconha, compra ali na esquina.”
Há deputados conservadores a favor da medida, como a deputada Carla Zambelli (PSL-SP). Ela diz que acredita que será possível aprovar em plenário o aval ao plantio.
“Sou a favor para este fim exclusivo”, diz ela, que também diz ser favorável ao uso dos medicamentos à base de Cannabis no SUS.
O deputado Capitão Augusto (PL-SP) diz acreditar que a maioria da ala ligada à segurança pública, que tem 306 deputados, é a favor do uso medicinal da Cannabis.
“Nossa preocupação na bancada de segurança é que isso não chegue na mão do consumidor para uso de drogas, mas, sim, que seja utilizado para fazer o medicamento. O grande problema é quem vai controlar isso”, diz ele, que defende que haja aval ao plantio de espécies com menor teor de THC, componente da maconha que “dá barato”.
Para ele, apesar da intenção inicial em autorizar o plantio, a Anvisa não teria competência para regular o tema, o que caberia apenas ao Congresso.
Esse, porém, não é o único ponto em que a proposta a ser discutida deve divergir da aprovada pela Anvisa.
O presidente da comissão, Paulo Teixeira (PT-SP), contesta a decisão de permitir que produtos que tenham concentrações acima de 0,2% de THC sejam indicados apenas a pacientes terminais e sem outras alternativas terapêuticas.
“Temos que discutir a possibilidade de plantio no Brasil, mas um plantio seguro. E discutir a possibilidade de um teor de THC maior. Definir que o teor de 0,2% é só para paciente terminal é uma limitação.”
Já a Anvisa diz que propôs estabelecer o limite de 0,2% devido ao risco de dependência vinculado ao THC, mas não deixou de oferecer a alternativa terapêutica para quem precisa.
MACONHA MEDICINAL
Como era
Lei 11.343, de 2006, proíbe plantio, cultura, colheita e exploração de Cannabis, “ressalvada hipótese de autorização legal” para fins medicinais e científicos, em local e prazo predeterminados e mediante fiscalização.
Atualmente, pacientes que fazem tratamento com óleos e extratos à base de canabidiol, substância encontrada na Cannabis e conhecida pelos seus efeitos terapêuticos, precisam de aval da Anvisa para importar os produtos, o que ocorre a custo alto.
Sem a regulamentação, universidades que desejam ter acesso à planta, por exemplo, precisam obter por importação ou doação previamente autorizadas. Empresas que têm autorização para pesquisas também reclamam de entraves e custos altos.
Até agora, há apenas um medicamento à base de Cannabis com autorização para venda no Brasil. É o Mevatyl, indicado para tratar espasmos em pacientes com esclerose múltipla, e cujo preço fica acima de R$ 2.000.
Indicação
Principais doenças apontadas nos pedidos de importação de canabidiol: epilepsia, autismo, dor crônica, doença de Parkinson e neoplasia maligna.
O que estava em discussão
Anvisa discutiu duas propostas de resolução: uma que trata de registro de remédios à base de Cannabis e seu monitoramento e outra com requisitos técnicos e regras para cultivo de Cannabis para pesquisa e produção de medicamentos.
O cultivo por empresas foi vetado.
LINHA DO TEMPO
– Novembro de 2013: após ver informações na internet sobre testes com canabidiol, um dos derivados da maconha, a família da brasileira Anny Fischer, que sofre de uma síndrome rara, decide importar dos Estados Unidos um óleo rico na substância para a criança;
– Março de 2014: uma das tentativas de importação falha e o canabidiol é barrado na alfândega. A família conta sua história a um jornalista, que lança o documentário “Ilegal” sobre o caso;
– Abril de 2014: a família de Anny consegue laudo médico da USP de Ribeirão Preto e entra na Justiça para conseguir importar o produto. O pedido é aprovado. Após o caso, Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) passa receber mais pedidos de autorização para importação de produtos à base de canabidiol;
– Outubro de 2014: Conselho Regional de Medicina de São Paulo autoriza a prescrição de canabidiol no Estado;
– Dezembro de 2014: Conselho Federal de Medicina autoriza médicos a prescreverem o canabidiol, mas somente para crianças com epilepsia e que não tenham tido sucesso em outros tratamentos;
– Janeiro de 2015: Anvisa libera uso medicinal de produtos à base de canabidiol, um dos derivados da maconha, retirando-o de uma lista de substâncias proibidas e colocando-o em uma lista de substâncias controladas;
– Março de 2015: cresce volume de decisões judiciais que obrigam a União a fornecer o canabidiol a pacientes com diferentes tipos de crises convulsivas, não apenas as epiléticas;
– Abril de 2015: Anvisa simplifica regras para importação de produtos à base de canabidiol e cria lista de produtos que podem ter facilitado processo de autorização para importar;
– Agosto e setembro de 2015: STF começa a discutir se é crime portar drogas para uso próprio. Julgamento, no entanto, foi suspenso após pedido de vistas do ministro Teori Zavascki;
– Março de 2016: após determinação judicial, Anvisa publica resolução que autoriza prescrição e importação de medicamentos com THC, um dos princípios ativos da maconha. Antes, essa substância fazia parte da lista daquelas que não poderiam ser objeto de prescrição médica e manipulação de medicamentos no país;
– Novembro de 2016: Anvisa aprova critérios para uso de medicamento à base de maconha e abre espaço para que remédios à base da planta possam obter registro para venda no país;
– Novembro e dezembro de 2016: três famílias, duas do RJ e uma de SP, conseguem habeas corpus que as permitem plantar e extrair óleo de maconha para uso medicinal e próprio; número irá crescer nos anos seguintes;
– Janeiro de 2017: 1º medicamento à base de maconha, Mevatyl, composto por THC e canabidiol e indicado para espasticidade, ganha registro na Anvisa para chegar ao mercado brasileiro;
– 2017: Anvisa inicia missões internacionais para países que regulamentam cultivo de Cannabis para pesquisa e produção de medicamentos e começa a planejar medida semelhante no Brasil;
– 2018: cresce número de pacientes com autorização para importar medicamentos à base de canabidiol;
– Junho de 2019: Anvisa avalia colocar em consulta pública duas propostas de resolução: uma com regras para cultivo de Cannabis para pesquisa e produção de medicamentos e outra com regras de registro e pós-registro desses produtos.