Seria uma das maiores fundações do mundo. Eu vivo em Portugal, lá tem a fundação Calouste Gulbenkian, que investe 100 milhões de euros por ano, faz chover em Portugal. Só os R$ 2 bilhões dessa fundação seriam mais de R$ 400 milhões, fariam chover no Brasil.
Com certeza. Quantos blogs isso ia sustentar, e era para isso, se diz claramente.
Acho que nós temos que estimular os órgãos competentes a fazerem o seu papel. Acho que o próprio corregedor do CNJ errou ao arquivar a investigação com o argumento de que o juiz já não era mais juiz. Mas, antes de chegar a essa conclusão, deveria ter feito todas as investigações que o próprio CNJ pode fazer. Porque, se não tiver nenhum efeito, pelo menos terá efeito de caráter pedagógico, subsidiará novas normas para essa relação entre juiz, promotor, delator, delegado. Então, acho que isso é importante. O CNMP, que é um pouco o primo pobre do CNJ, precisa funcionar mais. Por quê? Porque hoje temos notícias muito maiores de abusos mais frequentes na esfera do MP e pouca coisa acontece.
O senhor falou da questão das delações. Seria um ponto que deveria ter avanços no CNMP?
Eu tenho a impressão que a questão das delações vai envolver essa temática, e nós temos tido até alguns casos. Recentemente, levei um caso para a turma que envolve o Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime) do Paraná. E é um caso bastante singular, porque, no Paraná, uma determinada pessoa foi surpreendida no motel com uma criança. E aí ele fez uma delação, dizendo que havia corrupção na estrutura fiscal do estado do Paraná, e acabou sendo beneficiado por uma delação que abrangia inclusive o crime de pedofilia. Depois, ele se desentendeu com o MP e o MP cancelou a delação. Então ele saiu acusando o MP de ter adulterado os termos do depoimento dele. Em um terceiro passo, o MP chama e faz um acordo geral com ele. Agora, as partes estão aqui reclamando no Supremo, dizendo que essa prova que foi feita com tanta convicção é uma prova inidônea, que eles estão sendo condenados neste processo com base em uma delação que foi pré-fabricada. Para mim, me parece que temos que olhar isso, como estão funcionando esses órgãos, que têm muito poder.
Esses novos fatos aumentaram as possibilidades de mudanças na legislação?
No Brasil nós temos um abecedário de abuso de autoridades, vai de A a Z. Se você olha aí, as várias operações estão muito contaminadas. Afora esse caso, que tem todas suas especificidades, mas falando de cabeça, veja a operação carne fraca, você reúne 1.200 agentes policiais para dizer que tinha papelão na carne do Brasil, depois você diz que não é bem isso, que era um vício apenas de empacotamento. O episódio do reitor de Santa Catarina, em que imputaram a ele um desvio que não se perpetuou, agora esse episódio do presídio de Altamira, isso tudo dá um retrato de selvageria nessa gente. Portanto, a lei de abuso de autoridade seria bem-vinda, porque seria de aplicação geral.
A procuradora Raquel Dodge reuniu a força-tarefa e declarou apoio. O senhor acha que ela deveria ter um posicionamento mais firme?
Quanto a ela prestar apoio à Lava-Jato, é natural. É compreensível. Se perguntar também a nós, não vamos negar que há méritos nessa operação, como em outros, é inegável. E não se trata de desmontar estruturas que podem ser efetivas no combate à criminalidade, mas é preciso saber que isso tem que se fazer. Eu já disse isso de forma muito enfática: não se combate crimes cometendo crimes. E a toda hora, nós corremos esse risco, se não criarmos anteparos, controles, de produzirmos essas distorções, como essa que estamos vivendo. Como aquela que vimos, por exemplo, no caso do JBS-Miller, e tantos outros que vêm sendo revelados. A falta de transparência e a falta de controles correcionais levam à isso. Agora, sobre o grande dano que se causa, não somos nós, eventuais críticos de uma dada prática, que causamos danos a essas operações, são os malfeitos próprios. Eles que causam grandes danos.
Como o senhor avalia as palestras que os procuradores ministram mediante pagamento? Há um conflito de interesses ou não?
Talvez. Eu acho que deve haver realmente algo claro. Vocês sabem bem que eu sou professor há muito tempo, e conheço essa temática. Não vejo na magistratura esse agenciamento de palestras nessa dimensão, normalmente convidam as pessoas para dar palestras, aulas, conferências, e, quando muito, se oferece uma remuneração simbólica por algumas horas-aula. Naquela dimensão, é algo realmente muito incomum. Usando uma linguagem do mundo publicitário, os “400k” são algo que realmente, eu, que sou um modesto professor que só vendi, dentro do curso de direito constitucional, 100 mil exemplares, não recebo isso. Na verdade, não recebo nada, faço palestras sem cobrar. Não cobro por nenhuma.
Naquele caso, havia palestras para bancos, e até para uma empresa investigada pela própria Lava-Jato.
Tudo isso cai no tema que estou dizendo, sobre a nova institucionalidade. Acho que precisa disciplinar. Eu acho que todos nós, tenho até dito isso, vamos sair mais fortes disso. Acho que, institucionalmente, vamos sair mais fortes.
O senhor imagina que a opinião pública criou heróis? Como convencer a sociedade de uma lei como essa que o senhor está sugerindo?
Eu tenho a impressão de que nós temos que conversar, dizer isso claramente. É interessante quando as pessoas criticam uma lei de abuso de autoridade, que impõe limites a um delegado, um promotor, ou juiz, porque é como se dissesse “mas isso vai restringir minhas atividades”. Mas o quê? Significa que você precisa ter o direito de cometer abuso? De eventualmente fazer uma pequena tortura? Então, é preciso dialogar com a opinião pública. As pessoas, na verdade, só conseguem avaliar isso quando elas, de alguma forma, internalizam isso, e sabem que essa violência pode ser perpetuada contra elas.
Houve anuência de ministros do Supremo com eventuais abusos?
É muito difícil dizer. Quando a gente participa de uma série de eventos históricos, muitas vezes nós não temos a visão do conjunto, e muito provavelmente a percepção fica um tanto quanto embotada.
O senhor foi duramente criticado, em alguns momentos, nas redes sociais…
Não só nas redes, mas publicamente, também. Votei vencido quando entendia que devia fazê-lo. Em relação às questões das conduções coercitivas, fui eu o relator, felizmente o tribunal me acompanhou, e, por 6×5, essa posição foi mantida, mas àquela altura, já 300 pessoas tinham sido conduzidas coercitivamente lá em Curitiba, tanto era um modelo que depois nós declaramos ilegal.
O senhor acredita que esses fatos que ocorreram em Curitiba, que inclusive envolvem um ex-candidato à Presidência, podem ter interferido nos resultados das eleições?
Eu tenho a posição de que as eleições sofreram efeitos. É evidente. Porque o sistema político todo foi afetado por isso. E, se a gente olhar pontualmente, houve ações diretas no Mato Grosso do Sul, em Goiás, em Curitiba. Mas, independentemente disso, toda essa questão, a inelegibilidade, as imputações, as acusações, na verdade, mudaram o cenário político.
Foi um efeito intencional ou um reflexo da influência dos fatos na eleição presidencial?
Não, tem um efeito contextual, geral. Se a gente olhar hoje, os candidatos ligados à Segurança Pública lograram uma votação expressiva, beneficiários desse contexto. Não faria esse tipo de análise específica, eu acho que a operação Lava-Jato já levou por si só a afetar o sistema político, até muito antes da eleição, e, de certa forma, definiu quem poderia e quem não poderia ser candidato.
No ano passado, na iminência do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula, o general Villas-Boas chegou a tuitar falando que a força estava atenta à sua missão institucional. As Forças Armadas influenciam no Supremo ou exercem algum tipo de pressão no Supremo?
Não acredito que o tribunal tenha votado por conta do tuíte do general, e não vejo competência nas Forças Armadas para deferirem limites de competência do STF. Isso não está escrito no texto constitucional. Se alguém está fazendo essa leitura, é uma leitura extravagante.
Mas o senhor acredita que o general extrapolou um pouco a sua competência ao se manifestar na rede social?
Eu tenho a impressão de que o Brasil viveu uma embolada institucional. Muita confusão, em que os papéis ficaram trocados. Nós mesmos devemos ter cometido erros nesse contexto. É importante que agora as coisas sejam chamadas pelo nome e que todos nós trabalhemos em função de uma reinstitucionalização.
Quanto a esse processo, fazendo uma análise dos primeiros seis meses do governo, como o senhor avalia?
É um tema difícil, porque isso está em processo. Mas eu acredito que as instituições estão funcionando, e é claro que é um novo processo, um novo aprendizado, um novo testamento político.
Os fatos que vieram à tona podem interferir em julgamentos de ações do ex-presidente Lula aqui no Supremo?
Esse é um processo muito especial. E acho que precisa ser olhado com muito cuidado. E a gente vê como que ele aparece nos diálogos (entre os procuradores). A própria competência da 13ª Vara Federal de Curitiba para este caso deve ser avaliada. Por que, independentemente de falar se aqui tem ou não corrupção, essa corrupção estava associada à Petrobras? Essa dúvida aparece.
Com a prisão dos suspeitos de hackear os celulares, entre outros acontecimentos recentes, o senhor acha que já tem materialidade suficiente para analisar se houve um julgamento justo?
É uma questão que vamos ter que analisar com muita cautela. É um contexto muito peculiar que tem que contemplar inclusive o fato de o ex-juiz, que condenou o ex-presidente Lula, depois ter aceito um convite para ser ministro do governo adversário. Isso é um elemento que aparece inclusive nos questionamentos internacionais.
As provas, mesmo que de origem ilícitas, podem ser usadas pela defesa, podem ser argumentadas no processo?
Esse é um debate que vamos ter que travar. É evidente que a prova ilícita é repudiada pelo texto constitucional, a pergunta que sempre se faz é se a prova ilícita pode ser usada para isentar alguém de responsabilidade, para absolver alguém, e nós temos algumas respostas parciais em relação a isso. Por exemplo, quando alguém grava uma conversa quando ele está sendo constrangido, ameaça de extorsão, ou uma gravação ambiental para uma defesa. Com posições desse tipo, a jurisprudência constrói uma resposta positiva.
O país corre algum risco em relação à democracia?
Eu espero que não. Eu acho que o Congresso tem cumprido um papel importante na Câmara e no Senado. O Judiciário vem fazendo as avaliações e respondendo liminares e tudo mais, nós aqui, ainda hoje ajudamos no caso da relatoria do ministro Barroso, na inconstitucionalidade de uma MP que tenha sido repetida. Parece-me que esse poder de moderação e de contenção vem sendo exercido, mas é claro que nós temos que trabalhar no sentido de fortalecer as instituições, e valorizar a cada dia. Porque a democracia, além das regras gerais, faz parte de um pacto civilizatório, de um conjunto de regras não escritas. E essas regras não escritas estão sendo constantemente violadas.
Tem uma crise hoje na relação entre poder Judiciário e Ministério Público?
Não. Essas crises, nós resolvemos. Eu acredito que temos que, de fato, fazer uma autocrítica e fazermos os devidos aperfeiçoamentos.
O presidente Bolsonaro disse que vai indicar para o STF um “ministro terrivelmente evangélico”. O que o senhor acha dessa declaração?
O importante é que preencha os requisitos constitucionais. Talvez aqui haja uma certa hipérbole, porque estamos vivendo um momento político bastante intenso. Muitas vezes as declarações fazem tom de campanha política. Aqui nós temos católicos, ateus, agnósticos, eu sou católico, mas, a despeito disso tudo, não permito que a questão religiosa afete os meus posicionamentos. Não vamos fazer uma leitura política disso também, ele certamente está falando isso para um público que está um pouco mais ávido, que reclama do STF, é também um discurso político, nesse sentido.
Como o senhor vê as declarações polêmicas do presidente sobre Comissão da Verdade, fome, trabalho infantil e, especialmente, em relação à ditadura militar?
Eu tenho a impressão de que isso acaba incitando um debate público, e as palavras têm força, e é preciso que a gente preste atenção a isso. À medida em que determinadas autoridades emitem determinados juízos no campo da violência, muito provavelmente isso estimula o público. Por exemplo, se nós adotarmos um discurso homofóbico, muito provavelmente lá na ponta, nós estimularemos já não o discurso, mas ações homofóbicas. Então, é preciso ter essa dimensão. Agora, isto vale para todos nós. De alguma forma, acho que temos que, na medida do possível, nos pautarmos por esse cuidado.
A OAB interpelou o presidente, via STF, para que ele explique as declarações. A OAB agiu corretamente?
Vamos acabar julgando isso. Mas é uma forma civilizada de lidar com a temática no Estado democrático de direito. Ir à Justiça reclamar e fazer os possíveis encaminhamentos. Alguém já disse que, na Inglaterra, o Estado de direito é aquele que, às 6 da manhã, alguém bate e sabemos que é o leiteiro, e não a polícia. Já não existe mais leiteiro. Mas Estado de direito é aquele que não tem soberanos. Então, se a gente eventualmente errar, nós seremos cobrados por isso. Parece-me que esse é o sistema que está em funcionamento.
As críticas ao Supremo motivaram a abertura de um inquérito para tratar de fake news. O senhor acha que esse inquérito não acabou acirrando as críticas?
Não. Acho que o inquérito foi um momento de rara felicidade do ministro Dias Toffoli. Extremamente feliz. Não eram críticas, eram verdadeiras agressões. Manifestações que se traduziram inclusive no pedido de fechamento do tribunal. Ou a substituição do tribunal pelas Forças Armadas. Uma leitura extravagante do artigo 142 da Constituição. Parece-me que o inquérito não foi feito para inibir críticos, mas esses ataques violentos que se faziam e às vezes se escondiam no anonimato.
Mas até um general foi alvo dos mandados…
Sim, mas isso faz parte do processo. É uma resposta normal do Estado democrático de direito. Tem que se examinar o que o general estava a falar.
Mas houve censura a veículos de imprensa. Inclusive isso foi revogado posteriormente…
Mas isso faz parte do processo. Ali o que se avaliou é que haveria fake news. Que a notícia sequer existiria. E depois se comprovou que de fato a notícia existia. Que a declaração publicada era verdadeira.
O senhor foi considerado um carrasco pelo PT. Hoje existe uma visão diferente. O senhor mudou ao longo do tempo?
Eu fui, durante muito tempo, considerado um crítico do PT. Não obstante eu tivesse excelente relações com integrantes do PT, inclusive com o ex-presidente Lula. Eu fui presidente durante a presidência dele. Tivemos um diálogo elevado e excelentes relações. Agora, fui crítico, por exemplo, de abusos de poder. Critiquei a forma como se fazia o lançamento da candidatura da presidente Dilma. Mas eram críticas a atos específicos. É muito curioso que vocês olhem, por exemplo, que o PT indicou oito ministros do Supremo, na composição atual. Eu fui um dos cinco votos a favor do presidente Lula. Dois outros foram também de pessoas não indicadas pelo governo do PT. Ministro Celso e ministro Marco Aurélio.
Mas o senhor foi crítico desta composição maior em relação ao governo Lula.
Todos nós temos vivido momentos de aprendizado institucional em 30 anos, o tempo da Constituição. Passamos a viver uma sucessão de governos do PT. Dois mandatos do Lula e a princípio dois da presidente Dilma. O que levava a essa composição? É uma discussão que existe nos Estados Unidos. Quando se tem a predominância de uma forma política por mais tempo. Lá, os indicados permanecem pelo “bem servir”, sem limite de idade. Então, esse debate é um aprendizado. Foi nesse contexto que favorecemos a ideia dos 75 anos (limite de atuação dos magistrados).
O PSL, partido de Bolsonaro, quer mudar essa regra com a PEC da bengala…
E alguns aliados querem elevar para 80, no contexto da Previdência. Acho difícil que isso venha a ocorrer. É uma democracia muito jovem, e que tem feito seus experimentos. Inclusive em termos eleitorais. As diversas forças políticas, as mais variadas, de alguma forma, têm passado por testes.
O senhor talvez seja o integrante mais criticado da Corte, seja nas ruas ou na internet. Como avalia essa visão das pessoas de que o senhor é o ministro que solta bandidos?
Tem uma capa de uma revista que diz assim: “O juiz que discorda do Brasil”. Agora tem uma hashtag com a frase “Desculpe, Gilmar estava certo”. Isso faz parte deste contexto. Eu tenho a impressão de que, às vezes, era uma caixa de ressonância e uma grande confusão. Vocês mesmo da imprensa cometem esse erro. A prisão provisória só se justifica em caso de necessidade. Portanto, a princípio, só deve ocorrer depois do julgamento definitivo. Mas em função inclusive do populismo judicial, passa-se a utilizar a prisão para este fim. São juízes extremamente populares. Não significa que sejam os melhores. Claro que, quem se contrapõe a eles, paga um preço. E qual é o preço: a impopularidade. Felizmente, apenas a impopularidade. Nenhum atentado, até agora.
O senhor reforçou a segurança?
Às vezes sim. Em geral, no mundo acadêmico, temos um reconhecimento muito grande. O mundo da academia é muito aberto. E a vida prossegue. Qualquer tema que tenhamos que lidar e tenha esse caráter divisivo produz esse sentimento.
Em relação à decisão do Toffoli sobre o Coaf e a Receita, como o senhor avalia? A PF teme a suspensão das investigações.
Nós temos tido vários debates sobre essa temática. Remonta ao governo FHC, que é o artigo 6º da Lei Complementar que permite acesso ao sigilo bancário por parte da Receita. A partir daí, o debate seguinte é sobre compartilhamento. A Receita tem acesso e compartilha com o MP, sem autorização judicial. É uma questão delicada. Outra questão é do próprio Coaf, que levanta essas informações. Temos que examinar isso com cautela. Essa questão voltou e vamos ter que reexaminar. A discussão sobre o Coaf é qual o nível de detalhamento das informações para que se possa pedir a quebra. Vamos ter que travar o debate sobre um sistema mais ortodoxo, que pode ser mais lento, ou um mais flexível. Tenho a impressão de que vamos votar agora neste segundo semestre