Tudo tem causas próximas e causas remotas. O atual conflito Israel-Palestina teve uma causa próxima. O ataque do Hamas que matou civis israelenses e sequestrou 120 pessoas. Mas teve também causas remotas. A política extremista do governo Netanyahu, que expandiu a colonização e tornou a faixa de Gaza uma prisão a céu aberto. E o terrorismo permanente do Hamas.
Dois governos extremistas, o do grupo terrorista Hamas e o da ultradireita nacionalista em Israel, retroalimentam-se. O Hamas suplantou seu rival Fatah, que já foi liderado pelo pragmático Yasseh Arafat, sob o argumento de que o estado judeu deve ser eliminado porque jamais permitiria a criação de um estado palestino. E governa sob forma de ditadura. O governo israelense isolou-os na prisão a céu aberto da faixa de Gaza. Quando visitei a região, vi com meus próprios olhos os novos assentamentos na Cisjordânia. Diante do radicalismo de Netanyahu, a moderação do El Fatah enfraqueceu-o perante os demais palestinos em desespero. E, assim, as políticas intransigentes do governo de de Israel acabaram alimentando o Hamas. Algo análogo aconteceu em Israel. Quanto mais o Hamas praticava atos de terrorismo contra civis, mais os apelos violentos de Netanyahu encontraram apoio eleitoral dos israelenses. Uma escalada de intolerância retroalimentada por ambos os grupos dirigentes.
Os terroristas do Hamas não se importam com a vida. Nem com a dos israelenses, nem com a do povo palestino. Atacam qualquer um que discorde de suas táticas extremistas. Antes do 7/10 algumas pesquisas já mostravam que o Hamas tinha baixa aprovação entre os palestinos. Ouvi pela BBC um morador de um Kibutz que perdeu familiares dizer que, depois, responsabilizarão o atual governo de Israel por não lhes ter garantido a defesa prometida. Mas que, por ora, vão todos lutar contra o Hamas. Em outra entrevista, um palestino em retirada ao sul de Gaza depois do ultimado de Israel, relata que sabe que poderá voltar à sua segunda casa, que reconstruíra depois que perdera a primeira em outro episódio de bombardeio israelense. Ainda na BBC, o ex-embaixador de Israel nos EUA entre 2009 e 2013 justifica, sem corar, os bombardeios dos comboios de palestinos que atenderam o ultimado de Israel para evacuar o norte de Gaza. Alega que Israel apenas teria retaliado explosivos que teriam saído da área onde estavam os retirantes.
Analistas e governos parecem atônitos. Sem outra solução para além da natural solidariedade e reconhecimento do direito de Israel à autodefesa. Mas na comunidade internacional já surgem questionamentos sobre os limites da legítima defesa. Alguns argumentam que as potências ocidentais solidárias a Israel deveriam atribuir o mesmo valor à vida de um palestino que à de um israelense. Não fazê-lo seria uma falha moral que só aumentaria ressentimentos. Afinal, a punição coletiva de civis também é crime de guerra.
Outros questionam se a escalada de violência, ainda que eliminasse os 40 mil membros do Hamas, não reproduziria o ódio que depois seria canalizado por alguma outra organização terrorista. Também controversa tem sido a aceitação do bloqueio de eletricidade, água, gás e medicamentos aos 2,3 milhões de palestinos que vivem nos 360 km2 de Gaza. O direito de legítima defesa só pode ser exercido nesses limites tão largos? Ou a comunidade internacional deveria exigir um mínimo de proporção e razoabilidade. É como se o direito penal brasileiro, que exclui a ilicitude do ato em legítima defesa, autorizasse a vítima de uma agressão a extrapolar a sua reação para matar toda a família do agressor. Resta sempre a esperança de que, passado esse momento de escalada do horror, esses extremistas percam legitimidade. O governo de direita de Netanyahu, o mais extremista da história de Israel, prometeu segurança e governabilidade. Tentou concentrar poderes, inclusive reduzindo a independência da Suprema Corte. Falhou em suas promessas. Analistas como o prof. Michel Gherman (O Globo, 13/10) especulam que, ao final da atual escalada, ficará claro que não existe solução militar para o conflito e que se deve fortalecer os que falam a linguagem da negociação. Sem Netanyahu e sem o Hamas. Do lado palestino, esperemos que a sua maioria conclua que o terrorismo não é eficaz para avançar a causa palestina. E que as táticas do Hamas somente têm aumentado o sofrimento de um povo que há 75 anos vive sendo humilhado, privado de território e impedido de se desenvolver. No curto-prazo, que se criem corredores para evitar a catástrofe humanitária em curso, e que se negocie um cessar fogo. No médio prazo, esperemos que os dois povos e a comunidade internacional percebam que, entre dois grupos dirigentes extremistas, quem mais sofre são os dois povos transformados em buchas de foguetes.
Maurício Rands, advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford