Um inciso inserido de última hora no texto da Reforma Tributária, aprovada em julho pela Câmara dos Deputados, abre brecha para a redução de tributos sobre armas, munições e outros itens de defesa pessoal, alertam especialistas ouvidos pelo Globo.
O “jabuti”, como tem sido chamado, coloca que bens e serviços relacionados à “segurança, soberania nacional, segurança da informação e segurança cibernética” podem ter alíquota reduzida em 60%.
Segundo Luiza Machado, advogada especialista em tributação, não há clareza se o dispositivo atingirá apenas bens e serviços ligados à segurança nacional ou a qualquer tipo de segurança — incluindo a privada. No entanto, acrescenta ela, se o objetivo fosse reduzir a tributação de armamento apenas para segurança nacional, adquirido por meio de compra pública, o texto da PEC já dispunha de medida para autorizar a lei complementar a zerar alíquota em caso de aquisição pela administração pública.
— Isso pode indicar que o objetivo da inclusão do inciso não é beneficiar a segurança nacional, mas sim as compras privadas. Desse modo, o inciso abre brechas para que a lei complementar, que vai efetivamente listar os bens que terão redução de alíquota, permita a redução de tributos sobre armas e munições, serviços de segurança privada, clubes de tiro, entre outros — diz a advogada, que é mestre em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e integrante do Grupo de Pesquisa de Tributação e Gênero da FGV Direito SP.
Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz, afirma que o benefício não foi discutido com lideranças do Congresso e entrou em “formato de contrabando” no texto final da reforma.
— A redação é ruim, aberta, e claramente permite um incentivo tributário para a compra de armas de fogo, munições e outros produtos de defesa. Beneficia CAC’s (Caçadores, Atiradores e Colecionadores), empresas de segurança privada e lojas de armas — resume ele.
Langeani afirma que o inciso é uma tentativa da indústria armamentista se blindar de perdas futuras, tendo em vista as recentes medidas do governo federal que visam a reduzir a quantidade de armas e munições que podem ser compradas por cada cidadão.
— Eles estão perdendo a lista de produtos que podem ofertar, mas querem manter estes produtos atrativos no preço — avalia Langeani.
Imposto seletivo
Especialistas vinham defendendo que as armas e munições se enquadrassem na categoria de Imposto Seletivo (IS), que é um imposto incidente sobre determinados bens e serviços que causam consequências negativas à sociedade. Mas o trecho da Reforma Tributária que trata do IS cita apenas itens prejudiciais à “saúde ou ao meio ambiente”.
— Sem fazer menção à proteção à vida, o IS dependeria de uma interpretação bastante ampliativa para incidir sobre armas e munições — diz Luiza Machado. — E, mesmo havendo essa interpretação, há um impeditivo no texto para que o Imposto Seletivo incida sobre bens de alíquota reduzida.
Para Langeani, a indústria armamentista é o “exemplo mais claro” do tipo de produto que não deveria receber isenção de imposto ou redução de alíquota, e sim entrar na categoria de imposto seletivo:
— As armas de fogo e as munições causam 40 mil mortes por ano no Brasil. Isso sem contar os milhões de reais que o sistema público de saúde precisa gastar com internações decorrentes de ferimentos causados por armas de fogo.
Decretos não revogados
De acordo com o gerente do Sou da Paz, não é possível saber qual deputado incluiu esse inciso na Reforma Tributária. Mas certamente tem o “DNA da indústria da arma”, categoria que tem um lobby forte no Congresso e no governo, diz ele. Um dos reflexos desse lobby, na visão do especialista, seria o fato de Lula não ter recuado das reduções de alíquotas que o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro promoveu sobre a comercialização de armas de fogo e munições.
A alíquota de Imposto sobre produtos industrializados (IPI) sobre revólveres e pistolas, que em 2018 era de 45%, foi reduzida na gestão Bolsonaro para 29,25% e ainda não retornou ao patamar anterior. Outro exemplos são os cartuchos e munições, cuja alíquota passou de 20% para 13% no mesmo período.
Em abril deste ano, o Sou da Paz e outras 13 organizações que atuam para reduzir a violência no Brasil enviaram um ofício ao Ministério da Fazenda pedindo que o governo reavalie as alíquotas em vigor e tome as medidas necessárias para aumentá-las. Veja, abaixo, a relação de itens citados pelas organizações no documento encaminhado ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad: