Por Daniela Xavier
Os usuários de planos de saúde, assim como as empresas que disponibilizam esse tipo de benefício a seus funcionários, contribuem para a formação do caixa que mantém o Sistema Único de Saúde, sendo que, além e independentemente disso, também estão sob o manto do art. 196, da Constituição Federal, que lhes confere o direito à saúde gratuita mantida pelo Estado.
Ao permitir a dedução de despesas com a saúde, o Estado não está abrindo mão de uma receita, sendo falsa a premissa de que estaria deixando de arrecadar valores, através de uma “renúncia fiscal” ou, mesmo, exercendo a extrafiscalidade tributária de incentivo ao consumo desses serviços. Tal conceito se torna equivocado quando analisado sob o prisma do complexo sistema legal em vigor.
Em tese o Imposto de Renda é o mais justo dos impostos, por ser direto e pessoal, e permitir que a cobrança seja feita dentro de parâmetros mais equânimes do que os impostos indiretos. Isso porque, à luz do artigo 43 do Código Tributário Nacional, o fato gerador do Imposto de Renda é a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos, ou de proventos de qualquer natureza, constituídos pelos acréscimos patrimoniais não compreendidos no conceito de renda.
Logo os contribuintes que arcam com as despesas de saúde estão tendo na verdade um decréscimo patrimonial, já que, na hipotética situação do Estado ofertar saúde de qualidade para todos os cidadãos, essa parcela financeira permaneceria no patrimônio dessas pessoas, e não haveria hipótese que justificasse a dedução.
A lógica legal para a permissibilidade das deduções com as despesas com a saúde encontra ainda bases principiológicas, indo além de conceitos constitucionais (art. 196 da CF) e infraconstitucionais (art. 43 do CTN), tendo em vista que o sistema legal é formado por princípios constitucionais tributários, que visam à proteção do contribuinte de medidas arbitrárias, aqui em destaque, o princípio da isonomia, do non bis in idem e do não confisco.
O princípio da isonomia (art. 5º e 150, II da C.F) não está presente tão somente na graduação de alíquotas do Imposto de Renda, que progressivamente tributa mais quem tem maior capacidade contributiva, mas também está atrelada às hipóteses de deduções, como é o caso das despesas com a saúde.
Já o princípio constitucional do “não confisco” (art. 150, IV da C.F), em sua conceituação mais ampla, impede o Estado de instituir imposto com efeito confiscatório, o que estaria presente se o contribuinte fosse impedido de realizar as deduções legais no Imposto de Renda.
Por fim como princípio geral do Direito, aplicado na esfera tributária, o non bis in idem veda que um mesmo ente tributante cobre um tributo do mesmo contribuinte e sobre o mesmo fato gerador mais de uma vez e, portanto, também constitui elemento justificador do comando legal que possibilita as deduções de gastos com a saúde do Imposto de Renda.
Esses princípios constituem a base hierárquica do sistema legal em vigor, caracterizados por sua condição de imutabilidade, ou seja, são cláusulas pétreas constitucionais, não podendo ser abolidos nem mesmo através do expediente da Emenda Constitucional.
O professor Sacha Calmon, comparando o ordenamento jurídico brasileiro com o de outros países, ilustra bem a importância dos princípios em matéria tributária: “Os países europeus de tradição jurídica romano-germânica, a que pertencemos pela filiação lusa, trazem em suas constituições alguns princípios tributários, sempre poucos. Os que são Estados Federais colocam nas cartas políticas outros tantos princípios relativos à repartição das competências, inclusive tributárias. A Inglaterra, matriz do common law, em seus documentos históricos, os quais em conjunto formam a constituição inglesa, igualmente, mas de maneira esparsa, agasalha alguns princípios sobre o exercício do poder de tributar. Os EUA, que nos inspiram a República, o presidencialismo, o sistema difuso de controle de constitucionalidade e a Federação (certo que imprimimos à Federação a nossa feição centralizante), tampouco são um país que se demora em cuidados justributários no corpo da constituição.
Mas a nossa constituição foi bastante minuciosa e repleta de princípios tributários, que formam e integram o conjunto normativo, cite-se mais alguns: o princípio da capacidade contributiva (art. 145, § 1º da CF), da legalidade (art. 150, I da CF), da anterioridade (art. 150, III, “b” e “c” da CF), da irretroatividade (art. 150, III, “a” da CF), da Seletividade (Art. 153, §3º da CF/88), da não cumulatividade (Art. 155, §2º, I, art. 153, §3º, II, e art. 154, I da CF/88), das imunidades tributárias (Art. 150, VI, “a” da CF/88), entre outros.
Por tudo isso, conclui-se que o termo “renúncia fiscal” é errôneo quando utilizado para a dedução das despesas com saúde no Imposto de Renda, pois o ente tributante não pode renunciar aquilo que não pode tributar.
Daniela Xavier Artico de Castro é advogada, é especializada em Direito Contratual, Direito Tributário e Direito Processual Tributário