A vida dos ciganos nunca foi fácil. Varekai, como dizem em romani, a língua cigana dita oficial, ‘onde quer que seja’ em português. Mal compreendidos, alvo de preconceito e perseguição de toda sorte, a comunidade – que conta cerca de 20 mil pessoas em Pernambuco, segundo estimativas – pediu o apoio do Ministério Público para combater esses problemas e promover a inclusão social do cigano. O MPPE, através do seu Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça (CAOP), atendeu ao chamado e promoveu, na tarde desta quinta-feira (11), na sua sede na Rua Visconde de Suassuna, no centro do Recife, uma reunião com a participação da Associação dos Ciganos de Pernambuco (Acipe) e representantes de diversas secretarias estaduais – Educação, Saúde, Direitos Humanos e Justiça, Desenvolvimento Social, Criança e Juventude, Defesa Social e Meio Ambiente.
Conduzida pelo promotor Édipo Soares, coordenador do CAOP Saúde, a reunião teve ainda a participação da procuradora de Justiça Bernadete Figueiroa, coordenadora do Grupo de Trabalho ‘Racismo’; da procuradora Débora Tito, do Ministério Público do Trabalho (MPT); e do Padre Roberto de Andrade Silva, da Igreja Ortodoxa dos Estados Unidos no Brasil, entidade que vem há alguns anos desenvolvendo um trabalho junto a comunidades ciganas no Estado.
A pauta da reunião foi centrada em três áreas – Saúde, Educação e Direitos Humanos e Justiça – principais demandas das comunidades ciganas em Pernambuco. “A maior dificuldade é no acesso do povo cigano à saúde, em razão da invisibilidade dessas pessoas”, começou salientando o promotor Édipo Soares, abordando a exigência da apresentação de comprovante de endereço para uma comunidade que ainda apresenta situação de itinerância.
Além dessa questão, o presidente da Acipe, Enildo ‘Kalon’ Soares, falou da necessidade da capacitação de ciganos e ciganas como agentes multiplicadores de informação sobre cuidados com a saúde para atuar em suas comunidades, na formação de agentes de saúde dentro das próprias comunidades e da necessidade dos próprios profissionais de saúde receberem capacitação para melhor atuar junto a essas comunidades, conhecendo sua realidade, cultura e peculiaridades.
A cigana Elizangela Cavalcante, da comunidade de Ibiranga (distrito de Itambé, a cerca de 100km do Recife), reforçou a dificuldade de acesso do seu povo à saúde, apontando outro problema, esse de ordem cultural: a mulher cigana não se trata com ginecologista homem e nem sempre a rede dispõe de uma médica dessa especialidade para atendimento naquele município. Essa fala foi sublinhada também pelo Padre Roberto: “As ciganas só aceitam fazer seus exames preventivos com profissionais do sexo feminino”.
Em relação à educação, a questão maior é o desconhecimento da situação do povo cigano. O Estado não sabe exatamente quantos são e onde estão e nem como trabalhar com eles. Derivados dessa falta de conhecimento, vêm a grave situação do analfabetismo, inclusive entre jovens e adultos ciganos, o preconceito e a discriminação no ambiente escolar, a inexistência de material didático que valorize a cultura cigana e a inexistência de qualquer política pública que combata esses e outros problemas.
Há boas iniciativas, no entanto, como informou Josebias José dos Santos, da Gerência de Políticas Educacionais em Educação Inclusiva, Direitos Humanos e Cidadania da Secretaria Estadual de Educação. No próximo dia 23 de maio, a secretaria irá promover a primeira formação de professores e práticas pedagógicas na rede estadual sobre a cultura do povo cigano. Será no Centro de Formação Paulo Freire, na Torre. Mas a Secretaria de Educação já vem trabalhando, ainda que de forma pontual, o acesso à alfabetização das comunidades itinerantes, como um projeto realizado há dois anos com artistas mambembes e trabalhadores de parques de diversões. “Também estamos atuando em outras comunidades no campo”, informou a professora Zélia Freitas, da SEE/PE, destacando a necessidade do Estado ter uma radiografia das comunidades ciganas para melhor atuar nelas.
Depois da Educação, a pauta focou-se na área da promoção da Justiça e dos Direitos Humanos. Na carta das comunidades ciganas representadas pela Acipe, foram elencadas várias demandas, como a necessidade da proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais dos ciganos; o apoio à realização de estudos e pesquisas sobre a história, cultura e tradição do povo cigano; levantamento da situação das comunidades quanto à documentação básica – RG, CPF e o Registro Civil Nacional; e o apoio das municipalidades ao estabelecimento do povo cigano, principalmente no que tange à infraestrutura. “Também precisamos dar maior apoio aos artistas, aos artesãos, aos ciganos que fazem trabalho com pedras, metais, os tecelões”, colocou o presidente da associação, Enildo Kalon. A procuradora do Trabalho, Débora Tito, disse que o MPT “pode colaborar ajudando na formalização de cooperativas de trabalho, o que pode ajudar na captação de recursos, melhorando a condição econômica da comunidade”.
“Ninguém quer dar trabalho ao cigano”, contrapôs Elizangela Cavalcante, lamentando a discriminação que seu povo enfrenta. “O preconceito deriva da falta de conhecimento. As pessoas temem aquilo que não conhecem”, acrescentou a jornalista e escritora Gabriela Kopinits, integrante da Acipe, que há 17 anos desenvolve um projeto de incentivo à leitura através da sua Cigana Contadora de Estórias, o que tem ajudado na desconstrução da imagem negativa do cigano, principalmente entre as crianças.
“O problema é que não há leis específicas para o povo cigano, tem que tirar tudo da Constituição”, destacou a procuradora Bernadete Figueiroa, que coordena o Grupo de Trabalho de Combate ao Racismo do Ministério Público de Pernambuco – GT Racismo, organismo criado em 2002 pelo MPPE para ajudar a construir mecanismos de enfrentamento ao preconceito e de combate ao racismo. A procuradora salientou ainda a ocorrência de ações policiais que vitimaram ciganos, como relatou o próprio presidente da Acipe. Respondendo a isso, o Major Ériton Lucas, da Diretoria de Articulação Social e Direitos Humanos da Secretaria de Defesa Social, colocou a falta de conhecimento sobre a comunidade cigana como possível motivador desse tipo de ação e esclareceu que a SDS possui também um grupo de trabalho justamente para atuar contra isso.
Mas se há problemas, há também a vontade de buscar soluções. O governo do Estado está trabalhando, através de uma frente de secretarias, junto com a Associação dos Ciganos, na construção de um plano estadual para a população cigana. De acordo com Marinna Duarte, da Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude, a previsão é que este plano esteja concluído até o meio do ano.
O promotor Édipo Soares aventou a possibilidade desse plano ser convertido em instrumento legal de proteção ao povo cigano e sugeriu que o assunto fosse debatido também com os prefeitos, o que deverá acontecer em uma reunião a ser marcada na Associação Municipalista de Pernambuco – Amupe, uma vez que há comunidades ciganas em muitos municípios e esta seria uma boa maneira de esclarecer o assunto e sensibilizar os gestores sobre a questão, principalmente de combate à discriminação.
A perseguição e o preconceito sofridos desde sempre pelo povo cigano foram condensados na fala do cigano Eliezer Francisco Dantas, conhecido como ‘Antonio Seresteiro’: “É um tipo de ódio gratuito, de quem não tem amor nem por si próprio”. Pai de Elisangela e vice-presidente da Acipe, o cigano filosofou ainda: “Quando a pessoa vive de bem com a vida, seja qual for a etnia, ele não procura ofender, procura proteger. E é isso que nós queremos, viver em paz”.
Conclusão – Ao final da reunião ficou deliberado que os representantes das secretarias e entidades presentes encaminhem, em até 10 dias, os direcionamentos que podem ser dados às questões levantadas com a finalidade de promover a cidadania do povo cigano.
O assunto também vai ser debatido no próximo dia 24, Dia Nacional do Povo Cigano e Dia de Santa Sara Kali, a padroeira do povo rom. A Acipe, com apoio do governo do Estado, vai promover o “Seminário sobre a situação atual da comunidade cigana em Pernambuco: desafios e perspectivas para o futuro”. Será a partir das 14h no auditório da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos, na Praça do Arsenal, no Recife Antigo. A entrada é aberta a todos que quiserem conhecer mais sobre a realidade do povo cigano, que é uma etnia, não uma religião, como muitos ainda pensam.