Decreto publicado ontem no Diário Oficial da União para regulamentar o Mínimo Existencial, previsto na Lei do Superendividamento, provoca controvérsias e pode virar caso de Justiça. Aprovada pelo Congresso em julho do ano passado, a lei determinava que, nas negociações com credores, as pessoas superendividadas tivessem garantido um valor mínimo para a própria sobrevivência. Conforme o Decreto 11.150, assinado por Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes, o Mínimo Existencial será equivalente a 25% do salário mínimo vigente. Como, atualmente, o piso salarial é de R$ 1.212, o Mínimo Existencial será de R$ 303 mensais.
O valor é praticamente a metade do novo Auxílio Brasil, de R$ 600, que será pago às famílias mais vulneráveis de agosto a dezembro. Além disso, o montante estipulado no decreto não será corrigido pela inflação, como ocorre com o salário mínimo, mas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).
“Nenhuma pessoa é capaz de sobreviver com esse valor, que equivale a R$ 10,10 por dia. Esse decreto é um absurdo, porque esvazia a Lei do Superendividamento que foi aprovada para proteger o consumidor”, destacou Walter Moura, advogado do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) no Distrito Federal.
De acordo com Moura, o Idec pretende entrar na Justiça para derrubar o decreto, pois a medida deverá afetar cerca de 40 milhões de brasileiros superendividados. “A Lei do Superendividamento era para ser uma coisa boa, mas não previa o valor do Mínimo Existencial. Agora, com esse decreto, como diria uma fábula paraibana, o consumidor ganhou uma rapadura, mas na cabeça”, acrescentou.
O valor do Mínimo Existencial não é suficiente para comprar uma cesta básica no Distrito Federal. Segundo dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), somente neste ano, até junho, a cesta subiu 12,36%, para R$ 698,36, o equivalente a 62,29% do salário mínimo. Em São Paulo, o valor médio da cesta básica é o mais alto entre as capitais pesquisadas, de R$ 777,01.
Inadimplência
Com a inflação acima de dois dígitos desde setembro de 2021 e a escalada dos juros, os brasileiros estão cada vez mais endividados. Conforme levantamento da Confederação Nacional de Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), 28,7% do total de famílias do país estão inadimplentes, ante 24,3% no mesmo período no ano passado. Já o percentual de endividados chegou a 77,7% em abril, o maior nível desde o início da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência (Peic).
O advogado do Idec lembrou que o ambiente no país é permissivo para o aumento do endividamento das famílias brasileiras. “Os bancos oferecem crédito caro como balinha na rua, e não tem advertência contra marketing abusivo. É uma vergonha o Ministério da Economia não trabalhar em prol do cidadão e não fazer campanha de conscientização sobre os riscos do crédito com juros nos patamares atuais”, afirmou Moura. “No Brasil, os juros são abusivos. Em países escandinavos, a cultura é não pagar juros”, acrescentou.
O contador Sérgio Cabral, servidor em um órgão da área de Previdência, afirma que falta educação financeira ao brasileiro. “No país, as pessoas gastam mais do que ganham, é um padrão de vida que é muito diferente daquilo que conseguem suportar. Isso, a longo prazo, é pernicioso”, afirmou.
Para Miguel Ribeiro de Oliveira, diretor executivo de Estudos e Pesquisas Econômicas da Associação Nacional dos Executivos de Finanças Administração e Contabilidade (Anefac), o decreto não deve mudar a atividade das instituições financeiras, que evitam conceder crédito para quem tem mais de 25% da renda comprometida com empréstimos e financiamentos. “Claro que isso depende muito da dívida e da renda de cada consumidor, mas, mesmo em questão judicial, o banco tem interesse de receber, e não vai fazer um acordo se a pessoa endividada não tiver condições de sobreviver”, alertou.
Casa Civil
Em nota divulgada sobre o decreto 11.150, a Casa Civil informou que “a norma protege o cidadão contra o superendividamento e, ao mesmo tempo, contribui para o acesso do público de baixa renda ao sistema formal de crédito, evitando que o cidadão tenha de recorrer à agiotagem e a outras formas abusivas e inseguras de financiamento”. Devido à necessidade de adaptação dos agentes econômicos, o decreto começará a vigorar após 60 dias da publicação, segundo a pasta.
De acordo com a nota, o valor do Mínimo Existencial foi definido com base em estimativas do Banco Central, que calculou o impacto sobre a oferta de crédito. Segundo a pasta, foram excluídas da aferição do não comprometimento do Mínimo Existencial “as parcelas de financiamento e refinanciamento imobiliário; parcelas decorrentes de empréstimos e financiamentos com garantias reais; de contratos de crédito garantidos por meio de fiança ou com aval; de operações de crédito rural, entre outras”. Procurados, a Casa Civil e o Ministério da Economia, não comentaram as críticas do Idec até o fechamento desta edição.