Dois anos após a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizar a venda em farmácias de medicamentos à base de cannabis, mas rejeitar o cultivo em casa para fins medicinais, 11 produtos e um remédio já foram aprovados no Brasil.
A maconha medicinal pode ampliar o rol de tratamentos para doenças como esclerose múltipla, depressão e fibromialgia, mas o tema ainda enfrenta resistências em Brasília. Também falta um entendimento conjunto dos poderes Legislativo e Judiciário sobre a questão.
O pontapé inicial do uso da maconha medicinal no país ocorreu em janeiro de 2015, quando o canabidiol (CBD) saiu da lista de substâncias proibidas pela Anvisa e a autarquia autorizou o uso como medicamento controlado. De lá para cá, a flexibilização tem avançado, ainda que na retaguarda de outros países, e permitido opções de tratamento para diversas doenças e condições de saúde.
A quantidade de autorizações para importação desses produtos também aumentou exponencialmente. Dados da Anvisa mostram que foram 850 em 2015 e 33.793 em 2021, com estatísticas compiladas até 11 de novembro. O salto se deu, principalmente, a partir de 2019, com 8.522 aprovações. No ano seguinte, o número mais que dobrou, chegando a 19.120. A soma resulta em 68.775 permissões para 56.085 pacientes.
“Com toda a luta e articulação política, a gente conseguiu avançar, sobretudo com parceria de médicos que prescrevem esses óleos [medicinais à base de cannabis]. Mas ainda há um caminho enorme pela frente, sobretudo via Legislativo”, afirma a fundadora da Associação de Apoio à Pesquisa e à Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi), Margarete Brito.
O debate iniciado em 2015 ganhou fôlego um ano depois, quando a Anvisa liberou a prescrição de produtos e de medicamentos que contenham tetrahidrocanabinol (THC) — que passou a ser regulamentado — de forma isolada ou em conjunto com CBD. Com a medida, o THC foi permitido como base do produto — antes, só em caráter secundário, junto a outra substância já autorizada. Assim, a importação passou a vigorar em caráter excepcional via pessoa física, para uso próprio, para tratamento de saúde e com receita médica.
Entre as críticas à importação, estão o alto custo e a burocracia. Especialistas, produtores para uso próprio e associações argumentam que o cultivo em casa seria uma forma de democratização: “A impossibilidade de se produzir o remédio desde o cultivo da planta é o maior obstáculo para o acesso no Brasil, porque isso encarece e limita a variabilidade dos produtos”, diz o neurocientista e professor da Universidade de Brasília, Renato Malcher.
A aprovação do primeiro medicamento, para tratar espasmos prolongados em decorrência de esclerose múltipla, veio em 2017. Na época, o remédio já era liberado em 28 países, como Alemanha, Canadá, Estados Unidos e Suíça. A substância também abriu caminhos para o tratamento de epilepsia, dor crônica, esquizofrenia, ansiedade, depressão e autismo.
“A cannabis pode tratar condições que causem sofrimento físico ou psicológico, que envolvam inflamação e descontrole da atividade neuronal, pode inibir a proliferação de câncer e reduzir os danos causados por acidente vascular cerebral”, enumera Malcher.
Outro marco deste debate foi em 2019. À época, havia duas propostas em jogo na Anvisa: uma buscava autorizar o plantio para fins medicinais e científicos, e a outra, o registro de medicamentos à base da planta. Venceu a segunda, mais restritiva, após votação unânime. Os diretores também decidiram arquivar a primeira na reunião, marcada por um longo debate sobre o tema.
Diante da negativa da Anvisa para o cultivo, a judicialização permanece sendo o caminho para que pessoas possam ter a planta em casa. O advogado e diretor da Rede Reforma, Emílio Figueiredo, explica que não é possível quantificar quantos habeas corpus a Justiça já expediu para evitar a criminalização do cultivo em casa para fazer remédio, porque a maioria dos processos corre em segredo de justiça. Mas, sozinho, estima ter ultrapassado 150 decisões favoráveis.
Segundo as normas da Anvisa, os produtos aprovados devem conter, em sua maior parte, CBD e não ultrapassar 0,2% de THC. Também não podem receber nomes comerciais, mas dos componentes do produto e da empresa. A publicidade e oferta de amostra grátis desses fármacos, além da importação da planta e de partes dela, são vedados.
O projeto de lei 399/2015 quer alterar a legislação em vigor para regulamentar o plantio de maconha para fins medicinais e tornar viável a venda de medicamentos com extratos, substratos ou partes da planta, mas não versa sobre o uso recreativo. O texto foi aprovado em junho pela comissão especial na Câmara do Deputados e deveria seguir para o Senado. Deputados, contudo, apresentaram recurso para que a proposta fosse votada em plenário e a decisão cabe ao presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL). O presidente Jair Bolsonaro classificou, então, o projeto como “porcaria” e indicou que pode vetá-lo, caso fosse aprovado.
Apesar da resistência do governo e dos conservadores, a deliberação deve ocorrer ainda neste ano.
Para o fundador da Associação Brasileira para Cannabis (ABRACannabis), Pedro Zarur, os impactos ultrapassam as barreiras da saúde pública e do uso medicinal e adentram a segurança pública:
“Não apoiamos. Ele é focado exclusivamente para atender a grande indústria farmacêutica. Vender óleo de cannabis, hoje em dia, é uma coisa muito lucrativa. O mais baratinho é R$ 300, R$ 400”, diz Zarur. “Talvez seja este o grande problema do PL 399: não atende à grande população de baixa renda. É um projeto de lei para os ricos.”
Na esfera judicial, o Supremo Tribunal Federal (STF) travou o julgamento sobre a criminalização do porte de drogas para consumo próprio. O ministro Teori Zavascki pediu vista no julgamento em setembro de 2015 e seu substituto, o ministro Alexandre de Moraes, herdou o processo e devolveu o caso ao plenário três anos depois. O então presidente da Corte, Dias Toffoli, marcou o julgamento por duas vezes em 2019, mas o tirou de pauta.
Até o momento, o relator Gilmar Mendes defendeu a descriminalização do porte para uso de todo tipo de droga e Edson Fachin e Luís Roberto Barroso votaram pela descriminalização apenas do porte de maconha. Não há previsão para que entre em votação novamente.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por sua vez, decidiu em setembro que a posse de equipamentos de cultivo de maconha para uso pessoal não é crime. Dessa maneira, o caso não pode ser enquadrado no Artigo 34 da Lei de Drogas, que define pena de três a dez anos de prisão, além de multa.
Nessa perspectiva, o advogado da Rede Reforma avalia que as resoluções da Anvisa geram impactos na saúde pública por não democratizarem o acesso por meio do cultivo doméstico. Dessa forma, a insegurança jurídica seria um entrave:
“Não há norma para balizar, apenas a omissão sobre o uso medicinal, então depende da sensibilidade das autoridades. Para provar o uso medicinal, é necessário acompanhamento médico. Não existe causa ganha, é sempre busca do reconhecimento do direito”, pontua Figueiredo, que integra coletivo de advogados com experiência em casos da Lei de Drogas.
Agência O Globo