Governo Bolsonaro vai criar comissão para pente-fino ideológico de questões do Enem

O governo Jair Bolsonaro (PSL) vai criar uma comissão especial para fazer uma análise ideológica do banco de questões do Enem. O principal alvo será o expurgo de itens que abordem uma suposta “ideologia de gênero”, termo nunca usado por educadores.

Uma portaria do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), responsável pelo exame, será publicada nos próximos dias para criar a comissão. Servidores do próprio instituto temem que o pente-fino inviabilize outras abordagens, como visões críticas da ditadura militar, por exemplo.

Essa é a primeira medida oficial do governo para interferir em conteúdos educacionais. O Enem é porta de entrada para praticamente todas as universidades federais do país. Na última edição, 5,5 milhões de jovens e adultos se inscreveram no exame. O presidente do Inep, Marcus Vinicius Rodrigues, disse que a comissão vai buscar neutralidade das questões da prova. Esse trabalho estaria na esteira de uma revisão de todos os processos dentro do instituto.

Segundo Rodrigues, a abordagem do tema de gênero não é pertinente para uma prova. “Quando a gente fala em gênero, acho que não cabe a escola tratar disso. Cabe à família tratar disso. Eu não teria como sugerir uma questão que são de assuntos familiares”, disse. “Eu posso fazer uma medição, uma boa redação, para atestar se o aluno tem ou não condições de seguir na vida profissional sem buscar um tema que venha a agredir ou não estar de acordo com alguns valores”.

Segundo educadores, a abordagem educacional sobre questões de identidade gênero pode colaborar com o combate a problemas como gravidez na adolescência, violência contra mulher, machismo e homofobia. A igualdade de gênero é um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas. Grupos conservadores e religiosos veem nessa discussão um suposto risco de destruição da família tradicional. Na posse como ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodriguez criticou o que chama de “ideologia de gênero” e exaltou a família e a Igreja.

O próprio Bolsonaro catapultou sua carreira política atacando o tema da sexualidade na educação. Segundo ele, haveria ações na escola de estímulo à sexualização precoce. O Enem é direcionado para a jovens concluintes do ensino médio, de 17 anos, ou que já finalizaram a etapa. Na última edição, mais de um terço dos inscritos tinham entre 21 e 30 anos.

Uma questão do Enem 2018 citava um dialeto utilizado por gays e travestis e foi criticada por Bolsonaro. “Uma questão de prova que entra na dialética, na linguagem secreta de travesti, não tem nada a ver, não mede conhecimento nenhum. A não ser obrigar para que no futuro a garotada se interesse mais por esse assunto”, disse Bolsonaro em novembro, ainda antes da prova.

Em 2015, o tema da redação do Enem foi “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”. A proposta trazia um texto da filósofa francesa Simone de Beauvoir, o que foi considerado uma tentativa de doutrinação por parte do então deputado Bolsonaro. O presidente já indicou que quer ver a prova antes, iniciativa endossada pelo presidente do Inep. Mas a ideia da comissão, no entanto, é que o próprio banco de itens do exame seja alvo de um pente-fino ideológico.

Também não há definição sobre os critérios que vão nortear a análise das questões. “É natural que tenhamos um conhecimento e segurança da qualidade do Banco de itens”, diz Rodrigues. O Banco Nacional de Itens é formado por questões que passam por rigoroso processo de produção. Uma única questão prevê dez etapas, que envolvem desde o treinamento de professores à revisão dos itens por parte de especialistas das áreas de conhecimento.

Os itens passam ainda por um pré-teste, que é a aplicação das questões a uma amostra populacional com características semelhantes à do público-alvo do Enem. Essa é uma forma empírica de avaliar parâmetros, tais como a dificuldade, o grau de discriminação e a probabilidade de acerto ao acaso da questão.

De acordo com Denise Carreira, da Ação Educativa, “criar uma instância a para censurar questões é mais um retrocesso”. Segundo ela, a agenda de gênero tem sido afirmada na política educacional de vários países. “Discutir gênero é discutir questões muito centrais da democracia, que afetam a vida cotidiana das mulher, da população LGBT e também dos homens. Quando a gente silencia vai deixando o problema da violência só crescer”.

A Pesquisa Nacional sobre Estudantes LGBTs e o Ambiente Escolar, de 2016, indica que 73% dos jovens entre 13 e 21 anos identificados LGBTs foram agredidos verbalmente na escola em 2015 por causa da sua orientação sexual. É o maior índice entre outros cinco países da América Latina onde a mesma pesquisa foi realizada. Já a gravidez é o principal motivo de abandono escolar das meninas.

Folhape

Pedro Augusto é jornalista e repórter do Jornal VANGUARDA.

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