O ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp, 74 anos, é um personagem importante de vários momentos cruciais no mundo político e jurídico do país. Ele foi corregedor nacional de Justiça e presidente da Comissão de Juristas instituída pelo Senado Federal para a elaboração do anteprojeto de reforma do Código Penal, além de coordenador da Comissão Nacional da Verdade. Também idealizou as varas especializadas em julgar crimes de lavagem de dinheiro e combate ao crime organizado, onde atuou o agora ministro da Justiça, Sérgio Moro.
Em entrevista ao CB.Poder, uma parceria entre o Correio Braziliense e a TV Brasília, o ex-ministro afirmou que as declarações do presidente Jair Bolsonaro, sobretudo referentes ao período do regime militar, já configurariam crime de responsabilidade, o que levou ao impeachment dos ex-presidentes Dilma Rousseff e Fernando Collor de Melo, mas considera que o ambiente político não é favorável no momento. Além de analisar medidas do governo, Dipp comentou sobre a Lava-Jato e as possibilidades de Moro integrar o Supremo Tribunal Federal (STF). Confira trechos da entrevista:
Como o senhor avalia as declarações do presidente Jair Bolsonaro, principalmente sobre o período da ditadura militar?
É extremamente lamentável que um presidente da República declare e propague tantas inverdades, tantas maledicências e de modo tão cruel com relação a vítimas do período militar e, em especial, àqueles familiares que ainda buscam por algum tipo de afago e lembrança em relação aos corpos que até hoje não foram encontrados. É o caso do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, que foi atacado de maneira sórdida pelo presidente quando o assunto que ele tratava na reportagem não dizia respeito a questão de mortos e desaparecidos, e ele cria um ambiente hostil, inclusive, desmentindo documentos oficiais que foram elaborados pelo próprio Estado brasileiro. Ataca a Comissão Nacional da Verdade dizendo que ela é uma balela, quando a comissão trabalhou dois anos e meio em cima de documentos, de depoimentos, que foram obtidos de maneira difícil, especialmente aqueles que deveriam ter sido oferecidos pelas Forças Armadas e não foram. E muitos daqueles documentos foram obtidos por órgãos não governamentais dos Estados Unidos. Isso é de uma crueldade extrema, de uma inverdade e de uma falta absoluta de conhecimento sobre o que ocorreu naquele período.
Há janela para alguém propor um impedimento do presidente?
Quando o presidente da República fala, em especial, sobre as questões do regime militar, ele se esquece que está falando também, por dispositivo constitucional, como o comandante e chefe das Forças Armadas. Assim, cada vez mais, há essa divisão da sociedade brasileira, as pessoas se odeiam entre si por questões menores, algo nunca visto. O presidente da República, pelo que tem dito e feito até agora, evidentemente para mim e para muitos, já estaria em curso em pelo menos um artigo que diz respeito a crime de responsabilidade: uma lei de 1950, que propiciou o impeachment de Dilma e Collor. Por declarações, atos e atitudes que ferem a honra, a dignidade e o decoro do cargo.
Há clima político para isso?
Existem pessoas que acham que levantar esse tipo de debate sobre impeachment pode acabar vitimizando o presidente. Ao mesmo tempo em que eu disse que o conjunto da obra possibilita a incidência desses artigos legais, eu digo claramente que não há clima para qualquer medida de impeachment. Não há clima político nem social, a sociedade está dividida, qualquer rastilho de pólvora pode causar uma explosão. O Congresso é ainda novo, sem uma pauta própria, e o Judiciário, leniente. O Supremo é muito sensível à opinião pública e também está extremamente dividido entre si, eu não diria acuado.
O que se pode fazer neste país com um presidente que já declarou que fala o que quer mesmo?
Alguém tem de colocar um freio no presidente. Se eu soubesse a fórmula, eu daria a indicação, mas alguém de dentro do governo. O Congresso, ou esses que foram atingidos pelas declarações, devem, sim, procurar o Judiciário.
Um dos pontos de apoio do governo é a popularidade do ministro Sérgio Moro, mas, desde o episódio da Vaza-jato, houve um desgaste grande. Essa perda de força dele também pode enfraquecer Bolsonaro?
Acredito que sim. O ministro Moro teve muito prestígio, evidentemente, não é apenas por força dessas interceptações, mas ele sempre tratou a Lava-Jato como algo acima do bem e do mal, isso é uma dedução minha, como um ser etéreo, superior. A minha impressão é de que o ministro da Justiça é um empecilho para o governo Bolsonaro. Hoje, o ministro Moro precisa muito mais do presidente do que o presidente precisa dele.
O senhor acha que ele deveria deixar o cargo?
A Polícia Federal sempre teve e certamente está tendo uma total independência para exercer suas funções de polícia judiciária, mas o ministro da Justiça, que tem a preponderância administrativa financeira, está sendo objeto do inquérito de que é vítima e de que ele não consegue manter distância. Talvez, até por estar muito perto da polícia, do tempo em que foi juiz, ele não consegue se dissociar. Age como chefe do inquérito no momento em que acusa, comunica as autoridades e julga, porque ele disse que ia destruir provas (de informações hackeadas), então fica uma situação muito difícil. O ministro Moro acaba se desgastando, e uma das razões é a permanência no cargo. Em tese, acho que durante o período dessa investigação em que ele figura como vítima, e a investigação está sendo feita pela Polícia Federal, o ideal seria isso (se afastar), mas não podemos falar em tese no Brasil de hoje.
O que o senhor, como jurista experiente, viu daquela relação entre o então juiz Moro e o Ministério Público?
Rasgue o Código de Processo Penal, de processo civil, retire-se âmbito jurídico do distanciamento e da imparcialidade do juiz. A gente sabe que num inquérito o juiz é muito mais próximo de um promotor do que de um advogado, mas há limites. Ninguém até agora, entre os interlocutores dos diálogos vazados, contestou expressamente o conteúdo. O dia em que qualquer deles disser claramente que não falou aquilo, aí o benefício da dúvida passa a ser a favor dos interlocutores. Ninguém quer ser julgado por um juiz parcial, a imparcialidade é uma conquista do cidadão, e isso está sendo muito bem discutido.
No início da Lava-Jato, o senhor chegou a elogiar Sérgio Moro. Acha que é razoável ele ter deixado a 13ª Vara em Curitiba e ter ido para o ministério? E hoje, dentro desse contexto, apresenta credenciais para ser ministro do Supremo?
Acho que para um juiz com tanta projeção mundial, afinal, ele conduziu o maior processo de enfrentamento à corrupção da história do Brasil ou, talvez, uma das maiores do mundo, houve erros e acertos. Prisões preventivas em excesso, delações premiadas forçadas etc., isso é uma coisa, ele tinha e tem ainda o reconhecimento da sociedade, o meu reconhecimento também. Agora, no momento em que ele deixa a magistratura, condena um potencial candidato à Presidência da República e, imediatamente, passa para o Executivo no governo de quem talvez tivesse mais dificuldade de vencer as eleições se o candidato fosse aquele que foi condenado, acho que foi um erro de cálculo.
A gente tem de entender, porque Moro é uma pessoa jovem, é uma celebridade, consequentemente, a vaidade humana é compreensível, mas tem outro aspecto. A Lava-Jato em Curitiba já estava sendo esvaziada, os processos estavam sendo distribuídos para outras varas, aquele juiz único da Petrobras já não existia mais, por manifestações do Supremo. Moro é um juiz de primeiro grau, não é dos juízes mais antigos para ascender por antiguidade ao Tribunal Regional da 4ª Região. Para ir por merecimento, ele vai ter uma concorrência muito grande de outros juízes que têm merecimento também para virar desembargador, então ele estava em uma situação difícil para chegar ao tribunal, aquele de segundo grau. A magistratura estava pequena para Moro, e talvez isso tenha feito com que ele tivesse essa rápida ultrapassagem, que está se mostrando extremamente arriscada.
Em relação ao Supremo, o senhor considera que ele apresenta as credenciais, considerando aí os atuais fatos?
No momento atual, independentemente da capacidade jurídica do juiz Sérgio Moro, da sua honestidade, com todos esses fatos que estão postos, não vejo nenhuma possibilidade de que possa vir a integrar o Supremo. Não que o presidente não possa indicá-lo, porque o presidente é capaz de tudo, mas não acredito que haja ambiente político no Congresso, no Senado, e a própria receptividade entre os membros do Supremo. Isso é importante: o Supremo, mesmo com as suas divergências, dá o seu recado, quem quer, quem não quer.
Correio Braziliense