Similar à antiga CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira), o novo “imposto digital” que o governo pretende criar deve ter peso maior para os mais pobres, ampliando a desigualdade tributária do país, dizem especialistas.
Segundo os analistas, as contrapartidas prometidas pelo governo para a criação do imposto -desoneração de folha, aumento da isenção do IR (imposto de renda) e ampliação do Bolsa Família- são insuficientes para compensar as distorções que seriam geradas na economia por um imposto amplo sobre transações financeiras.
Além disso, dizem os estudiosos, o teto de gastos impede que um potencial aumento de receitas gerado pelo novo tributo seja usado na ampliação do programa de transferência de renda para as famílias pobres.
Estudo publicado em 2007 -ano em que foi extinta a CPMF- pela economista Maria Helena Zockun mostrou que, naquela época, a alíquota de 0,38% da contribuição virava em média 1,32% na despesa das famílias, já que o imposto incide em cascata sobre as diversas etapas de produção e venda dos produtos e serviços consumidos.
Além de ter peso efetivo maior do que sugere sua alíquota, a CPMF também pesava mais sobre os mais pobres, calculou Zockun.
Isso porque essa parcela da população consome mais bens do que serviços, e os bens têm cadeias mais longas, acumulando mais impostos, quando eles incidem em cascata. Além disso, os mais pobres destinam toda sua renda para consumo, enquanto os mais ricos poupam parte de seus rendimentos.
Por conta desses dois efeitos, a parcela da renda comprometida com o pagamento da CPMF chegava a 2,2% para famílias com rendimento até 2 salários mínimos, estimou a economista. Já para as famílias com renda superior a 30 mínimos, o peso da contribuição era de 1%.
A regressividade da CPMF se somava a um quadro maior de desproporcionalidade da carga tributária, mostrou ainda a economista. Somando impostos diretos e indiretos (IPI, ICMS, PIS, Cofins, IR, contribuições trabalhistas, IPVA, IPTU, ISS e CPMF), os mais pobres gastavam 51% de sua renda com tributos, enquanto os mais ricos, cerca de 27,2%.
“Como a nossa arrecadação de tributos incide especialmente na produção e não na renda, e isso vai para o preço dos produtos, a população ao comprar está pagando imposto, sem nem perceber”, afirma Zockun, atualmente diretora de pesquisas da Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas). “Quando as famílias são mais ricas e poupam e, portanto, não gastam tudo em consumo, elas não ficam tão vulneráveis aos impostos sobre consumo.”
Segundo a economista, o efeito do “imposto digital” planejado pela equipe econômica não deve diferir muito daquele encontrado na CPMF em 2007. “Não seria muito diferente, não temos uma estrutura de consumo distinta do que tínhamos há 13 anos”, afirma.
Para o assessor especial do Ministério da Economia Guilherme Afif Domingos, o efeito do novo imposto seria compensando pela desoneração total da contribuição previdenciária patronal até um salário mínimo; redução da contribuição para os demais salários de 20% para 15%; aumento dos rendimentos isentos de IR dos atuais R$ 1,9 mil para R$ 3 mil; e a ampliação do valor do Bolsa Família dos cerca de R$ 200 atuais para um valor mais próximo de R$ 300, incluindo mais 6 milhões de beneficiários.
Afif Domingos rebate a crítica de que o imposto pesa sobre os preços, incide em cascata e prejudica desproporcionalmente os mais pobres. “Estão usando os pobres como escudo para esconder o que eles não querem, que é que se mapeie o custo do dinheiro”, diz o assessor.
“Quem está fazendo essa campanha são aqueles economistas ligados ao setor financeiro”, afirma. “Quando todos pagam um pouco, os governos podem arrecadar melhor, porque não há sonegação. A forma de prejudicar os pobres é a sonegação tributária.”
Para Zockun, as compensações planejadas pelo governo não são suficientes para equilibrar as distorções geradas pelo novo imposto, que deve ainda onerar exportações e investimentos e influenciar nas decisões dos agentes, que tendem a criar formas de driblar o tributo.
“É uma forma distorcida de fazer a compensação, tem formas melhores de eliminar a contribuição sobre folha, por exemplo, através de um ajuste do imposto de renda”, argumenta. “O princípio é que não se deve criar distorções no sistema, porque elas tornam a economia menos eficiente, portanto ela gera menos crescimento do que poderia com os recursos disponíveis.”
Leonardo Alvim, pesquisador do Núcleo de Tributação do Insper, dá mais um argumento: o teto de gastos impede que recursos adicionais obtidos com o novo tributo sejam destinados à ampliação do Bolsa Família. “Com o teto dos gastos, aumento de receitas não pagam aumento de despesas”, diz Alvim.
“O teto congelou o gasto, corrigido apenas pela inflação”, explica. “Se duplicar, triplicar ou quadruplicar a receita, isso não permite gastar mais. Então eventual receita decorrente de uma nova CPMF não pode ser usada para Bolsa Família, que é uma despesa. Só é possível gerar uma nova despesa cortando outra despesa, nunca por meio de nova receita.”
Daniel Duque, pesquisador do Ibre-FGV, avalia que, se de fato for criado, o novo imposto digital do governo pode ampliar a desigualdade, num momento em que ela já deverá estar exacerbada, com o esperado fim do auxílio emergencial e o fechamento de postos de trabalho em decorrência da pandemia.
Duque lembra que a desigualdade diminuiu na crise do coronavírus, com o forte aumento da renda dos mais pobres devido à ajuda emergencial.
Com base em dados da Pnad Covid-19 e da Pnad Contínua do IBGE, o economista estima que o índice de Gini de todas as rendas dos brasileiros (medida que inclui as transferências do governo) caiu para 0,4835 em junho deste ano, vindo de 0,5620 no primeiro trimestre de 2019. O índice de Gini é uma medida de desigualdade que varia de zero a um -quanto mais próximo de zero, maior a igualdade.
“Com o fim do auxílio emergencial em alguns meses, é esperado um aumento da desigualdade”, diz Duque.
Segundo ele, a recriação da CPMF se somaria a esse quadro já desfavorável e iria na contramão das reformas tributárias em discussão no Congresso, que visam acabar com a cumulatividade dos impostos sobre consumo através da criação de um IVA (Imposto sobre Valor Agregado).
“As reformas tributárias em discussão no Congresso, mesmo sem mudanças no imposto de renda, reduziriam a regressividade tributária”, diz Duque. “No entanto, a introdução desse imposto sobre pagamentos iria no sentido contrário, aumentando a regressividade dos tributos, com impacto negativo sobre a desigualdade.”
Folhapress