Paulo José Cunha
Até outro dia era fácil definir, em linhas bem gerais, um esquerdista: alguém que condena toda forma de opressão e exploração. Alguém que apoia as lutas dos trabalhadores. Que abraça o socialismo, porque todo mundo merece ser tratado de forma igualitária, sem privilégios, respeitando as individualidades de credo, raça, nacionalidade etc. Que defende a liberdade ampla e irrestrita, cujo único limite é a liberdade do outro. Esquerda é sinônimo de visão generosa das relações sociais, econômicas e trabalhistas.
O socialismo moderno defende que, sobre toda propriedade privada, pesa uma hipoteca social. Quer dizer: o socialismo/comunismo que originariamente defendia a estatização ampla e irrestrita passou a admitir a propriedade particular dos meios de produção desde que bens, serviços e lucro produzidos tenham destinação social e não se restrinjam às mãos do patrão, aumentando a concentração de renda e o fosso social.
Arquipélago Gulag
A história andou. E não foi pra frente, infelizmente. O ideário original virou saudade guardada em livros de história. Com a negação das liberdades pelos regimes que se diziam de esquerda mas usavam e usam a força em nome da causa que defendem, as liberdades são suprimidas, a pluralidade de pensamento é combatida com violência e os dissidentes, perseguidos, presos e mortos.
Uma verdade difícil de aceitar: na maioria, os governos instituídos sob a égide das ideologias libertárias deram lugar a regimes de força. Aí os muros começaram a ruir, a União Soviética derreteu, a economia chinesa se capitalizou e experiências comunistas que ainda resistiam como as da Albânia e da Coréia do Norte revelaram sua pior face: não passavam de ditaduras sanguinárias.
Cuba é outra experiência que perdeu o rumo. Emperrou. Enferrujou. E pensar que nossa geração vibrou com os guerrilheiros retornando vitoriosos de Sierra Maestra, e que um dia vestimos com orgulho a camiseta com a foto famosa de Che Guevara…
A retórica vazia
No Brasil, boa parte dos partidos e líderes que ainda se dizem de esquerda perderam-se numa retórica vazia, sem contrapartida prática, gerando uma profunda decepção em quem se formou no ideário solidário e generoso da esquerda genuína.
A decepção começou pela ação de partidos, principalmente o PT, que nasceu sob a promessa de lisura e honestidade, derrapou em vários artigos do Código Penal e lamentavelmente terminou se limitando a repetir mantras em defesa do Grande Líder, enrolado até os cabelinhos das sobrancelhas com mensalões, petrolões, sítios, triplex e o escambau.
Agora, que Lula sofreu no tribunal mais uma derrota classificada pela imprensa nacional e internacional de acachapante (e foi mesmo), o mantra se repete, insuportavelmente. Não se entende como um partido com uma história como a do PT não tenha tido competência para produzir discurso novo, arejado, convincente, capaz de escapar da narrativa do golpe (inexplicavelmente o partido não defende a volta de Dilma, a injustiçada, será por quê?).
Ricardo Stuckert/Instituto Lula
“Perseguição tornou-se uma palavra que serve para explicar tudo e mais alguma coisa”
Perseguição tornou-se uma palavra que serve para explicar tudo e mais alguma coisa. Ninguém é mais perseguido do que Lula. Cercado de Paloccis, Vaccaris, Dirceus e Andrés Vargas, é o único ser humano a não ter nada com coisa alguma, pelo que se lê nas notas, discursos e outras manifestações do comando petista.
Resiste impávido, em odor de santidade, sobrevivendo entre os ímpios. Seria vítima de implacável perseguição por um extraordinário e espetacular complô de golpistas formado pelos poderes executivo, judiciário e legislativo, pela polícia federal, pelo ministério público, pela mídia golpista, pelas elites brasileiras, pelo império norte-americano e o que mais couber neste complô.
Nunca antes na história deste ou de qualquer país se conheceu complô tão vasto, tão amplo e tão bem articulado. Reféns do Grande Líder, os sublíderes petistas insistem em bater na tecla surrada: Lula teria sido condenado sem provas, Sérgio Moro seria um agente infiltrado da CIA, tudo estaria sendo urdido com a única finalidade de impedir que seja candidato a presidente.
Convenhamos: chega a ser patético. Cansativo. Irritante. Até porque, da direita que assola o país, com Temer à frente, nunca se esperou outra coisa além das canalhices noticiadas dia sim e outro também. Os bandidos emedebistas, tucanos et caterva que estão indo pro xilindró ou para prisões domiciliares são velhos conhecidos.
O PT, por sua vez, se esquece por conveniência que é o pai legítimo de Temer. Sim, pois foi o PT que o escolheu para ser vice de Dilma. Os petistas que votaram nela votaram nele. Repita-se, apenas com outras palavras, para não haver dúvidas: Temer, o vampiro, foi eleito vice-presidente da República… pelo PT. É filho legítimo, registrado em cartório pelo PT.
Ultimamente, alguns eleitores do PT de Lula começaram a perceber a derrocada moral do Grande Líder. As redes sociais andam abarrotadas de lulistas arrependidos, tristes, desapontados, decepcionados. Perceberam que não dá mais pra acreditar na retórica da perseguição. Acordaram. Mas a direção do partido não consegue tirar os antolhos e ver o que se passa ao lado.
Um grande partido chamado PT
E olha que o PT é um grande partido. Nasceu sob luzes fulgurantes da esperança, quando o Brasil saía das trevas da ditadura militar. Foi anunciado numa festa linda que rapidamente conquistou quem sonhava com um país limpo da corrupção, comprometido com a justiça social, contra o patrimonialismo, sem os vícios da velha política.
Se retomar o espírito original de sua criação, o PT ainda pode sonhar em ser o grande partido da classe trabalhadora brasileira. Isso é difícil, porque começa por um sincero exame de consciência, pelo reconhecimento dos erros (argh!), e pela retomada do seu ideário original. Em poucas palavras: o PT precisa deixar de ser refém de Lula. Precisa se reinventar.
Como, de resto, a esquerda como um todo precisa de renovação de discurso e de práxis. Basta ver como já não empolga nem seduz. Enfrenta sua pior crise. Enquanto isso, os conglomerados de centro-direita a cada dia assustadoramente ganham mais espaço no mundo inteiro.
Em 1920, Lênin dizia que o esquerdismo era a doença infantil do comunismo. Hoje, os sublíderes petistas estão pendurados por conveniência num discurso forçado em defesa do Grande Líder. Sem ele no proscênio sabem que seu futuro político pode dar com os burros no brejo. Tudo isso permite adaptar a afirmação de Lênin. E, quase 100 anos depois, afirmar que hoje, o lulismo é a doença infantil do petismo.