Se por um lado idosos e pessoas com doenças crônicas são as maiores vítimas do novo coronavírus, as mortes de adultos mais jovens ou entre pessoas sem registro de fatores de risco avançam no Brasil.
Embora representem uma parcela menor, a quantidade de óbitos pela doença entre homens e mulheres com menos de 60 anos cresceu cerca de 64 vezes em um intervalo de menos de um mês.
No mesmo período, as mortes entre aqueles com mais de 60 anos aumentaram aproximadamente em 18 vezes.
A análise foi feita pela reportagem em dados do Ministério da Saúde.
No fim de março, quando a pasta começou a divulgar um detalhamento das mortes, 89% delas eram de idosos. Em menos de um mês, o percentual caiu para 72%.
O balanço de março mostrava ainda que 85% das pessoas que tiveram as mortes por Covid-19 analisadas tinham registro de ao menos uma doença prévia ou outra condição de risco conhecida.
Na última segunda (20), esse número chegava a 70%.
Desde então, com a troca no comando da pasta, o ministério suspendeu a divulgação de balanços completos com esses dados.
Especialistas ouvidos pela reportagem apontam diferentes fatores para essa mudança no perfil das mortes.
Um deles é o fato de que a população brasileira é majoritariamente mais jovem em comparação a países europeus, por exemplo.
“O Brasil tem um núcleo majoritário de pessoas que estão entre a segunda e a quarta década de vida. Era natural e esperado que a doença, ao alcançar um patamar de transmissão acelerada, alcançasse esse grupo da população”, afirma a pneumologista Margareth Dalcolmo, pesquisadora da Fiocruz e uma das principais especialistas na linha de frente do combate à Covid-19.
Para ela, a epidemia rejuvenesceu no Brasil na medida em que começou a migrar de áreas mais ricas, onde foram registrados os primeiros casos, também para áreas mais pobres, onde há mais jovens e problemas de assistência são mais visíveis.
“A doença tem um vetor de crescimento para comunidades menos favorecidas. Nessas áreas de concentração urbana, de muita densidade demográfica, tem muitos jovens”, diz.
“A doença é democrática, no sentido de que atinge qualquer um. Ninguém precisa ter diferença de idade para isso”, afirma.
Ela lembra, porém, que o risco de gravidade e complicações ainda é mais alto em idosos e pessoas com doenças crônicas prévias.
Entre idosos, as principais são cardiopatia e diabetes. Já entre os mais jovens, aparecem asma e obesidade.
Mas o que explica o fato de haver mortes por coronavírus em pessoas sem registro desses fatores?
“Podemos ter, por exemplo, a ocorrência de uma suscetibilidade individual que nunca foi observada”, diz a médica Fátima Marinho, do Instituto de Estudos Avançados da USP.
É o caso de doenças autoimunes, ou outras em que há frequentemente atraso no diagnóstico ou ficam de forma latente, com manifestação tardia.
“E não se sabe como receberiam um vírus como esse”, afirma Marinho, que lembra que o novo coronavírus chama a atenção por causar pneumonias graves e ser mais agressivo em comparação a outros vírus respiratórios mais comuns.
Para Luciano Goldani, professor de infectologia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), o aumento de mortes entre mais jovens impressiona.
“Uma hipótese são comorbidades escondidas, porque temos uma radiografia maior dos problemas em população mais idosa. Jovens fazem menos exames, então é difícil analisar se são isentos de comorbidades. Há também questões genéticas que precisam ser estudadas”, afirma.
O médico infectologista e consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia Leonardo Weissmann coloca como hipóteses uma suscetibilidade genética ou mesmo uma maior exposição ao vírus.
Weissmann também menciona o fenômeno conhecido como tempestade de citocina, ainda pouco explicado, que pode se dar quando o corpo combate agentes infecciosos.
Uma possível reação a esse quadro leva a uma ativação excessiva do sistema imunológico, com fortes consequências para o paciente. “Pode atacar vários órgãos e levar à morte”, afirma.
Um outro fator apontado é a obesidade.
Atualmente, 56% dos brasileiros estão com excesso de peso e 18% são obesos, grupo que tem se mostrado mais vulnerável à Covid-19, de acordo com Mário Carra, da Abeso (associação brasileira para estudo da obesidade).
Para os especialistas ouvidos pela reportagem, é preciso considerar ainda a subnotificação nos registros gerada pela baixa oferta de testes, o que afeta a análise da mortalidade, e diferenças no modelo de registros.
Um deles é a possibilidade de falhas no preenchimento dos dados completos sobre comorbidades em alguns municípios.
Ao mesmo tempo, de acordo com Marinho, da USP, pode haver casos em que o registro da morte ocorreu como infarto, mas análises posteriores confirmaram também uma infecção pelo vírus Sars-CoV-2 –sem que isso estivesse incluído na notificação.
Questionado sobre os fatores que levam ao aumento no índice de mortes em alguns grupos, o Ministério da Saúde não respondeu.
Recentemente, o secretário de Vigilância em Saúde, Wanderson Oliveira, apontou a possibilidade de que a ocorrência de mortes em pessoas sem fator de risco conhecido esteja ligada a uma possível coinfecção por outros vírus respiratórios. A hipótese, porém, ainda precisaria ser confirmada.
No Recife, um caso que chamou a atenção foi a morte de um bebê de sete meses, faixa etária que inicialmente estaria fora de complicações.
A criança, no entanto, tinha uma cardiopatia grave, o que pode ter agravado o quadro.
“O vírus parece poupar em maioria as crianças sem comorbidades, e é muito raro ter mortes nessa faixa etária. No adulto jovem o risco individual é menor, mas ele existe. A verdade é que, quanto maior o número de casos, mais vamos vendo escapes à regra”, afirma o secretário municipal de Saúde do Recife, Jailson Correia.
Dados divulgados pelos estados também indicam especificidades locais.
Em São Paulo, 75,8% das mortes ocorreram entre idosos, segundo dados do governo estadual. Já no Rio Grande do Sul, esse índice é de 83% –acima da média do país.
A pirâmide etária do estado fornece algumas explicações. “A população idosa do Rio Grande do Sul é proporcionalmente a maior do país, um perfil parecido com o da Itália”, diz Goldani, da UFRGS.
Por causa dessa semelhança, afirma, houve um receio de que a situação do país se repetisse, o que fez o estado ser um dos primeiros a implementar uma política de distanciamento mais rígida.
O mesmo foi feito em outras regiões –que, no entanto, avaliam agora uma flexibilização, em meio a pressão do governo federal.
Para Margareth Dalcolmo, o aumento de mortes entre pessoas mais jovens mostra riscos em alterar a política de isolamento social.
“Se flexibilizarmos agora, em um momento em que a epidemia está em franca ascensão, vamos pagar um preço humanitário de mortes evitáveis.”
Diario de Pernambuco