“Não há salvação com o modelo político que vigora no Brasil”, disse o ministro do STF Luís Roberto Barroso em debate em São Paulo na manhã desta segunda-feira (13). Para o magistrado, o sistema proporcional de lista aberta adotado no país é um “desastre completo”.
Em via oposta, Fernando Limongi, professor do departamento de ciência política da USP, argumentou que essa crítica é conveniente aos políticos, pois atribui ao sistema, e não a eleitos e a seus partidos, problemas graves do país.
Barroso e Limongi participaram de encontro realizado pela Folha de S. Paulo e pelo Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) a respeito dos 30 anos da Constituição de 1988. A mediação foi do jornalista Uirá Machado, editor da Ilustríssima.
Barroso, na ocasião, destacou pontos positivos e negativos resultantes de nossa Carta Magna. No primeiro grupo elencou a estabilidade constitucional nas últimas três décadas (que sobreviveu, ressaltou, a inúmeros escândalos de corrupção e a dois impeachment); a conquista da estabilidade monetária (com o fim da hiperinflação e a difusão da ideia de responsabilidade institucional); e o que chamou de expressiva inclusão social (redução da pobreza, ações afirmativas para negros, reconhecimento de direitos para a comunidade gay).
Dentre os pontos negativos, destacou o sistema político (o ministro vê falhas graves em nossos modelos de governo, partidário e eleitoral) e a incapacidade de evitar o que julga ser uma corrupção sistêmica no país, a envolver políticos, empresas públicas e privadas.
A soma desses dois fatores, avalia Barroso, resulta na instabilidade do que se conveniou chamar de presidencialismo de coalizão, modelo institucional do país desde o fim da ditadura.
Num cenário de grande fragmentação partidária, o presidente depende de alianças com uma vasta gama de agremiações para dar sustentação a seu governo, oferecendo em troca cargos em ministérios e estatais.
Administrar os interesses múltiplos e frequentemente contraditórios da base, destituída de princípios comuns, corrompe a governança, analisa Barroso. “Nesse tipo de presidencialismo de coalizão, o presidente precisa nomear gente inexperiente ou que está lá só para roubar”, diz o ministro.
Como alternativa, Barroso propõe uma reforma política ampla. O sistema de governo migraria para o semipresidencialismo, no qual o presidente é o chefe de Estado, eleito pelo povo, e o primeiro-ministro é o chefe de governo, nomeado pelo presidente e chancelado pela maioria do Parlamento.
“A principal vantagem que o semipresidencialismo herda do parlamentarismo repousa nos mecanismos céleres para a substituição do governo, sem que com isso se provoquem crises institucionais de maior gravidade. O primeiro-ministro pode ser substituído sem que tenha de se submeter aos complexos e demorados mecanismos do impeachment e do recall”, escreveu Barroso em artigo.
Quanto ao sistema eleitoral, Barroso defende a adoção do voto distrital misto, mescla do modelo majoritário (aplicado para eleição de prefeitos, governadores, senadores e presidente) e do proporcional (como são eleitos vereadores e deputados).
Nesse caso, cada estado é dividido em distritos eleitorais, nos quais cada partido lançará um único candidato. O eleitor terá direito a dois votos: em um candidato de seu distrito e no partido político de sua preferência. Cada distrito elegerá um único parlamentar.
Uma vez que as campanhas se concentrariam em territórios menores, o voto distrital misto, diz o ministro, seria um caminho para baratear os custos da eleição, aproximar o candidato dos eleitores e fortalecer os partidos.
A respeito desse ponto, o ministro e seu colega de debate estavam em total desacordo. Limongi defendeu que o atual sistema do Brasil é um dos “melhores disponíveis no mercado”.
O Brasil adota desde 1945 o modelo proporcional de lista aberta. Partidos ou coligações lançam uma lista de candidatos em cada estado. As cadeiras obtidas por eles são atribuídas aos candidatos mais votados.
“Essa insistência na reforma política é uma desculpa ou uma forma de diminuir a pressão por mudança. Não é à toa que são os políticos os primeiros a falar em reforma. É uma forma de se desculpar e jogar a culpa pra lá. ‘A culpa não é minha, é do sistema. A lei é ruim’.”
O voto distrital, completou, não vai baratear campanhas nem aumentar a representatividade social no Congresso.
Ao contrário, corre-se o risco de maior interferência política e econômica para barrar a competição. “Representação proporcional de lista aberta é o melhor sistema disponível, de longe.”
O grande problema político brasileiro, comentou Limongi, é que partidos tenham acesso a recursos públicos, sobretudo a tempo de TV no horário eleitoral, mesmo quando apresentam resultados pífios nas urnas.
Siglas nanicas e de médio porte sem atuação programática definida fazem desses benefícios artigos de venda durante as eleições. “Enquanto não mexermos nisso, nada vai mudar”, concluiu Limongi.
Judiciário interventor
No início de sua fala, o professor da USP destacou a desconfiança que o texto constitucional expressa em relação ao legislador e, por extensão, ao Poder Legislativo e ao sistema eleitoral do qual se origina esse poder.
A preocupação de que o legislador, por incapacidade de cumprir seu papel, pudesse travar o poder decisório dominou os debates legislativos durante a elaboração da Constituição, diz o professor.
Como prevenção a isso, Executivo e Judiciário tiveram seus poderes reforçados para evitar que o legislador viesse a impedir a experiência democrática.
“Achava-se que o Executivo deveria prevalecer para que as reformas fossem feitas”, disse Limongi. “O Legislativo era visto como representante do atraso, de grupos conservadores, em descompasso com a sociedade.”
Criou-se, então, um modelo em que o Executivo tomou para si o papel de maior legislador do país. O STF, por sua vez, não assumiu de forma imediata as prerrogativas que a carta constitucional lhe facultava.
A inflexão teria se dado em 2005, quando o Supremo determinou a formação da CPI dos Bingos, atendendo a pedido de intervenção de políticos da minoria, após recusa dos líderes da base governista em indicar membros a ela.
“O STF alterou radicalmente sua posição a partir dessa decisão. Em lugar de jogar a favor da governabilidade e se alinhar ao Executivo e a maioria, passa a defender a minoria e a aceitar o papel de interventor desses conflitos.”
Em 2006, o STF declarou inconstitucional a cláusula de barreira aprovada pelo Congresso no bojo de uma reforma política que buscava limitar a proliferação de siglas no país.
“Todo o incentivo à fragmentação está ligada à redistribuição de recursos que resultou da derrubada da cláusula. Isso fortaleceu os pequenos partidos, que têm acesso ao fundo partidário e ao tempo de TV a despeito de votos. Não precisam de votos para ter recursos.”
Sem comentar diretamente os casos citados pelo professor, Barroso diz não defender o processo de judicialização da política, salvo na defesa de direitos fundamentais e do jogo democrático. “Nos outros temas o Judiciário deveria ter autocontrole, como nos temas administrativos.”
Folhapress