(Da série: “Ainda não conheci o mundo, mas há quem diga que ele começa em Caruaru”)
Por ELAINE VILAR*
O que seria de nossas vidas sem suas contingências? Essas situações cujo resultado final depende de eventos futuros incertos. Sem elas, estaríamos condicionados a uma existência taticamente orquestrada em busca de metas inabaláveis, a uma monotonia caquética ao ritmo do balanço da rotina ou do pêndulo do relógio.
Por conta delas (as contingências), o frio na barriga, os suores gélidos, o rosto em brasa, todos os demais sintomas do inesperado e do novo ou do velho repaginado, revestido, relido e, nem por isso, apartado de suas diferenças e peculiaridades. Elas escorregam, evaporam e se diluem sem que possamos dominá-las. Ora nos agraciando, ora nos amaldiçoando, vão rebulindo e revirando nosso ser em nós e no mundo, desafiando-nos a correr quando paramos; parar quando corremos; chorar quando sorrimos ou sorrir quando choramos.
Foram essas arteiras que, aos poucos e rapidamente, tal como perdição de virgem, trouxeram-me da capital política à capital do Agreste, juntando um tanto de medo com um muito de vontade. O resultado? Uma coragem voluptuosa, cega e eufórica que, de tão maliciosa, vicia e encanta. Quando se vê, já foi. Está feito para as alegrias ou as desventuras, de acordo com a disposição do coração.
Por conta dessa sedução acoitada pelas contingências aqui estou, nestas terras de Caruaru. Encantada por seu sotaque, seus ares, seus sons, cores e gosto, seu povo e sua aspereza. Quase dominada por uma vontade contida de chamá-la minha ou meu (ô cidade andrógina!), a semelhança do primeiro “eu te amo” dos enamorados. Minhas pupilas dilatadas de paixão por esse “Meu Caruaru”, esperando por seu abraço quente, que parece constrangido pela presença invisível de outro grande amor: o “Meu Recife”.
E assim dividida, silencio essa paixão. Dia após dia, aproveito o cheiro de novidade. Desfruto das manhãs orvalhadas de curiosidade e das noites enluaradas de poesia, apreciadas pelo olhar de viajante, forasteira, desbravadora. Entretanto, aos poucos, as mãos do convívio revelam mazelas, defeitos e vícios escondidos pela paixão pueril de donzela. É nesse casamento aliançado pelo cotidiano que se desvenda o “Meu Caruaru”, acordando em suas cuecas velhas e desbotadas, com mau hálito e mau humor, após uma noite de roncos e flatulências.
Ahh! Por que o cotidiano insiste em ser tão rude? Onde está seu romantismo? Parece uma tia velha, enrugada em suas cismas e desconfianças, a tagarelar: “São todos iguais, só muda a localização no mapa!” E em um piscar de olhos, relampeja-me os sinais do descuido para com a nossa relação. “Meu Caruaru” despreza meus sentimentos de esperança e enlevo. Grandes e pequenos incidentes me levam a crer que ele tem uma amante vulgar, interessada em sugar-lhe os recursos.
As pistas e rastros de sua lascívia estão por toda parte. São torres erguidas sem planejamento, amontoadas em quarteirões de ruas estreitas, sem infraestrutura, comércio e serviços, originando bairros mortos de vida. Veículos seguem sem orientação, empilham-se e ocupam todos os espaços, imperiosos pela convicção de que a cidade lhes pertence. Construções entopem as veias do Ipojuca, despreocupadas com a iminência de um enfarto.
Conheço esses sintomas, já os vi! Deles e de outros o “Meu Recife” padece, convalesce e arqueja seus últimos fôlegos, antes de tombar aos pés dessa amante voraz que promete os prazeres da modernidade em troca “apenas” da qualidade de vida de seus amantes. “Meu Caruaru” tão jovem e já tão enfermiço! Contaminado pelas venéreas dos antros políticos e da promiscuidade econômica.
Tento não amá-lo para poupar-me o sofrimento já bem conhecido. Chamo a razão. Ela não vem. A emoção tapou-lhe os ouvidos. Então a paixão me impulsiona a questionar: “Onde está o Plano Diretor da cidade? Quem por ele responde? Onde está a Justiça? Não haverá por ele outros amores? Onde estão os que resistem e lutam?” “Onde estão os que amam?”
Já não posso ver-te, “Meu Caruaru”, com os olhos pudicos da paixão juvenil. Por isso, sonho viver contigo um amor maduro. Um amor que espere receber na medida daquilo que se possa dar. Assim, ainda desejo tanto o teu abraço e a oportunidade de dizer-te meu.
*Elaine Vilar é jornalista e servidora do Tribunal de Justiça de Pernambuco.