Opinião: Deputado pede mordaça contra juiz

Por LUIZ FLÁVIO GOMES

O deputado Henrique Alves, presidente da Câmara, se irritou e pediu abertura de processo (junto ao CNJ) contra o juiz Marlon Reis, um dos responsáveis pela iniciativa popular da ficha limpa (MCCE), porque teria praticado “ilícitos”, ofendendo a classe política inteira, com seu livro Nobre Deputado (editora Leya). Juridicamente seu pedido deveria ser arquivado de plano; politicamente, vejo equívoco na iniciativa.

No livro (de leitura imprescindível, desde o segundo grau) narram-se minuciosamente todas as tramoias e maracutaias que alguns (alguns!) parlamentares (ou candidatos) praticam para conquistar ou manter o mandato eletivo. Em nenhum momento acusou-se de corruptos “todos os políticos”. O picaretômetro do Lula, em setembro/93, falava em 300 congressistas! Nunca vamos saber ao certo, mas existem (daí a indignação popular).

O livro detalha os métodos mafiosos e criminosos empregados por alguns candidatos ou políticos moralmente não ilibados (cobrança de propina na liberação de emendas ao Orçamento, uso de ONGs fraudulentas para seu enriquecimento, caixa dois, caixa três etc.) para chegarem ao poder (ou para mantê-lo, se possível eternamente).

As afirmações do livro foram reiteradas em entrevista ao Fantástico (“Há entre os deputados pessoas que alcançaram seus mandatos por vias ilícitas”). O CNJ deu prazo de 15 dias para o juiz se defender. Do ponto de vista jurídico, o “processo disciplinar” deveria ser arquivado prontamente. Por quê?

Porque a CF/88 protege exaustivamente a liberdade de expressão, ou seja, a liberdade de informação, de imprensa e de manifestação do pensamento intelectual, artístico, científico etc. (veja CF, art. IVIXXIV e art. 220 e §§). Veda-se o anonimato assim como a censura prévia ou a posteriori. Providências “disciplinares” contra um livro configuram censura posterior.

Sabe-se que as liberdades não são absolutas. Encontram limites nos direitos de personalidade (direito à vida, ao próprio corpo, ao cadáver, à honra, à imagem, à privacidade etc.). O entrechoque conduz à ponderação (princípio da proporcionalidade). Qual deve preponderar? Tudo depende da análise do caso concreto, guiada por vários critérios.

Quais critérios? O ministro Luís Barroso os sintetetizou: veracidade (subjetiva) do fato ou da opinião, licitude do meio empregado para a obtenção da informação, personalidade pública ou privada da pessoa afetada, local e natureza do fato ou da opinião, interesse público na divulgação da ideia, eventuais sanções a posteriori etc. Todos favorecem e amparam a publicação do livro Nobre Deputado (que se fosse exorbitante ensejaria reparação civil, nunca punição ao autor).

O juiz não é um eunuco intelectual. Pertence a uma instituição, mas tem liberdade científica, artística e intelectual. Quem exerce um direito (que se transforma em devercívico quando se trata de criticar os políticos corruptos) não gera risco proibido (Roxin). Logo, não há nenhum ilícito a ser censurado ou punido.

A conduta permitida por uma norma (sobretudo constitucional) não pode ser proibida por outra (Zaffaroni, tipicidade conglobante). O regime democrático é um “mercado” de livre circulação de fatos, ideias e opiniões. Quando houver abuso, cabe indenização (como asseverou Ayres Britto na ADPF 130, que declarou não recepcionada a Lei de Imprensa). Opino pelo arquivamento imediato do procedimento disciplinar que tramita no CNJ contra o juiz Marlon Reis (um guerreiro do Movimento Contra a Corrupção Eleitoral).

LUIZ FLÁVIO GOMES, jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil.

Natural do Rio de Janeiro, é jornalista formado pela Favip. Desde 1990 é repórter do Jornal VANGUARDA, onde atua na editoria de política. Já foi correspondente do Jornal do Commercio, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo e Portal Terra.

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