Dr. André Fusco
Muitas empresas têm áreas especializadas e profissionais em lidar com vários tipos de conflito, entre eles, o ombudsman, comitê de ética, ouvidoria interna, além de outros. O papel destas áreas é aceitar a personificação e avaliar quem é o verdadeiro culpado: o reclamante ou o acusado, ou seja, o avaliado ou o líder avaliador. Desta forma uma discussão infrutífera sobre quem é o desadaptado às regras faz com que fiquemos mais distantes ainda da verdadeira origem do conflito, com aquelas regras baseadas na meritocracia fordista, taylorista e toyotista.
A partir de algumas histórias que tive contato, comecei a fazer então um paralelo entre o trabalho para o adulto e o papel dos pais para a criança. Em geral, nestes espaços, questionar regras seria como questionar aquilo que dá contorno às relações. Fazer questionamentos sobre as regras seria equivalente a perguntar o fato de o pai ter direito de deitar-se com mãe. Em certas situações o desamparo infantil, na total dependência aos pais, a criança pode se achar num conflito edipiano que a obriga a reprimir o ódio pelo pai e o amor pela mãe. E vice-versa! O amor pelo pai, o ódio pela mãe. São sentimentos e desejos proibidos.
Em Freud, como citado pelo médico psicanalista francês, Christophe Dejours, há descrição de certas situações no triângulo familiar, filho, pai e mãe, em que há boa intenção de se fazer um paralelo entre a negação da origem do sofrimento e a escolha de um objeto suportável. Odiar o pai tem o potencial de me tornar órfão. Questionar as regras, que determinam o trabalho, tem o potencial de me tornar um desempregado e assim um desamparado social.
Diante da injustiça social e cultural contra o gênero feminino as duas opções são: em primeiro lugar, admitir a injustiça e se indignar (ou desistir); em segundo lugar adaptar-se a estas injustiças. Ao escolher me adaptar preciso negar estas incoerências e enfrentar o sofrimento para suportá-lo, renunciando, por exemplo, à maternagem, aquela técnica empregada na psicoterapia, que busca estabelecer entre terapeuta e paciente, no simbólico e no real, uma relação semelhante a que existiria entre uma ‘mãe boa’ e seu filho. Assim sendo, atribuo um valor a este comportamento.
Posto isto, a bem da verdade, milhares de mulheres seguem num equilíbrio tênue entre vencer as injustiças sociais contra seu gênero e esgotar-se. Aquelas que admitem a injustiça sofrerão o julgamento daqueles e daquelas que se adaptaram. Ao contradizerem as crenças vigentes, neste caso a de que a mulher profissional tem que escolher entre a carreira e a maternagem, estas transgressoras das regras consagradas sofrem estigmatização, exclusão e outras formas de anulação.
Uma alta executiva de uma grande empresa anuncia em uma plenária, para centenas de profissionais sob sua gestão, que após três meses de sua licença maternidade ela já havia voltado ao trabalho, pois para esta mulher “a carreira vem em primeiro lugar”. Aqui vemos um valor pervertido, o de abandonar e terceirizar a maternagem de uma criança e se torna algo exemplar, desejável, se for para dedicar seu tempo aos compromissos com a empresa em que está construindo sua carreira.
Segundo o médico Christophe Dejours, valorizar o ato de renunciar à maternagem faz com que ele seja suportável. A partir daí a grande executiva de empresas é a aquela que se sacrifica, a si e a sua criança. Caso contrário, sem essa valorização do sofrimento, seria apenas um sacrifício e muito mais difícil de suportar. A mãe executiva enfrenta virilmente seu sofrimento e nega as consequências desta escolha tão difícil. Mas por que se valoriza mais a carreira que a maternagem?
Este seria um exemplo de defesa psíquica pelo qual o sofrimento inicial estaria na desvantagem em que as mulheres enfrentam no trabalho. Alguns fatos que comprovam esta afirmação são, por exemplo, quando as mulheres têm que interromper suas carreiras com a licença maternidade e os homens não precisam. Mulheres que falam alto são histéricas e homens sabem se impor; mulheres que têm sucesso escutam que tiveram êxito provavelmente por sua beleza e não pela competência. Convém sublinhar, que mulheres recebem 77% dos salários dos homens nos mesmos cargos (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: Pnad de 2019) e por aí vai.
Numa foto da década de 1930 há a imagem de operários almoçando perigosamente a centenas de metros de altura em cima de uma a estrutura inacabada de um arranha-céu, em Nova Iorque. É insuportável pensar no risco de queda toda vez que for trabalhar. Menos penoso é acreditar que neste trabalho o risco é “normal”, que “sempre foi assim” e faz parte do bom trabalhador de altura conviver com naturalidade com este risco. É motivo de orgulho ter a coragem (enfrentamento viril) para enfrentar as alturas. Se quisermos ser inconvenientes e questionar essa crença, a de que o bom trabalhador de altura é aquele que não tem medo, seremos ridicularizados:
– Com licença, mas você não tem medo de trabalhar assim sem estar ancorado ou amarrado a algum dispositivo para evitar sua queda?
– Que dispositivo? Eu não preciso disso não! Sempre foi assim. Imagina se tiver que parar todo trabalho que eu fizer para me ancorar ou sei lá o que… não é assim que funciona. Você não serve pra trabalhar em altura. Não tem culhão!
Assim somos estigmatizados como inapropriados ao trabalho que todos eles fazem com tanta naturalidade. O problema não é o risco de queda. O problema passa a ser as pessoas que não têm a virilidade de conviver com este risco, já que sempre foi assim. São verdadeiros heróis, assim como a executiva que abre mão da maternagem.
A situação perde sua estabilidade e o equilíbrio é quebrado quando a realidade se impõe e algum trabalhador cai de centenas de metros de altura ou quando uma grande executiva renuncia à carreira ou adoece por conta das demandas do trabalho. As crenças geradas pelos mecanismos de defesa coletivos assim são abaladas.
Às vezes, uma instabilidade faz com que o trabalhador de altura considere o risco de queda. Começa a ser penoso trabalhar em altura sob esta ameaça. Então, ao invés de enfrentar o risco, ao invés de admitir a vulnerabilidade, observamos a responsabilização da vítima. Acontece então a personificação do problema na pessoa que evidenciou o risco. Os demais passam a buscar na vítima quaisquer características que a tornem diferente de si. Desta maneira, o risco fica muito mais atribuível a ela do que aos demais colegas de trabalho. Será que ele caiu porque tinha labirintite? Será que estava bêbado? Nesse sentido, eu posso seguir isento de riscos, pois não tenho labirintite, nem bebo com frequência.
Já a mulher que adoeceu provavelmente não deveria ter escolhido ter filho num momento de carreira como este. Por sinal, estatisticamente está comprovado que mulheres tendem a ter mais adoecimento mental que os homens no trabalho, o que é reconfortante aos homens e provaria que o problema do adoecimento é devido exclusivamente às escolhas ou a uma característica da doente.
Até a leitura de dados estatísticos tem sido distorcida para responsabilizar as mulheres e assim manter as crenças e valores vigentes. Personificamos nas vítimas a origem do sofrimento e temos dificuldade de enfrentar a realidade, suas incoerências e as injustiças consagradas. São situações que não podemos fugir de refletir e tentarmos sempre compreender seus significados.
* Professor Dr. André Fusco é médico graduado pela Universidade de São Paulo (USP), Psicanalista com Especialização em Psicodinâmica do Trabalho pela Fundação Vanzolini, MBA pela Fundação Getúlio Vargas, Founder & COO UMind Mental Health e TedX Speaker. Como consultor tem atuado no suporte a empresas sobre a complexidade da Saúde Mental e o sofrimento emocional de seus colaboradores, objetivando a produção de resultados sustentáveis por meio de ambientes saudáveis.